Capítulo 20 – Nesses braços
Baby I want
you like the roses
Want the rain
You know I
need you
Like a poet
needs the pain
I would give
anything
My blood my
love my life
If you were
in these arms tonight
(In these arms – Bon Jovi)
Dizem que a poesia precisa da dor[1].
Eu li isso em algum lugar ou escutei em alguma canção, mas não sei se é
verdade. O que sei é que o sofrimento existe puramente, e a beleza não costuma
estar entre suas companhias.
Por isso, embora a dor tenha muitas vezes estado ao meu lado ao longo do
caminho, ela nunca tornou a paisagem mais bonita. Exceto por hoje.
Esta noite, estou mergulhada em ambas, uma indissolúvel da outra, e tudo
é doce e amargo ao mesmo tempo.
Eu a vi. Marina. Ela esteve comigo. E eu senti tanto a falta dela! Ansiei
por esse momento como um viajante anseia por seu lar. Então, quando o momento
chegou, parecia mais com o fim da linha. Meu Deus, não foi nada bonito. Tanto
amor em meu coração e só o que eu senti foi medo. E dor. Tanta dor.
Eu quase poderia rir da ironia disso se neste exato momento me lembrasse
como, mas claro que o riso não acha o caminho até meus lábios. Risos requerem
sons e os sons estão temporariamente mortos. Quase como eu me sinto.
Todos os sons de minha alma, menos um.
A Minha Canção.
Eric.
Estou nos braços dele e isso faz minha dor se encher de poesia.
Como é possível? Dentro de mim, um foco de luz nasce na escuridão de
minha tristeza e eu me lembro do que decidi agora há pouco. Que eu quero ser
feliz. Que eu quero isto aqui. Este momento. Ele.
Eu quero Eric. O pensamento se liberta num impulso de onde quer que
esteve contido e se aninha no vazio dolorido de meu coração. E é bom.
— Ei? — ele sussurra.
Gosto de ouvir o som da voz dele quando estou encostada em seu peito. Em
meio a todas as coisas de que gosto na vida, acho que tenho uma nova coisa
preferida. O mundo me chega através dele e isso me faz sentir protegida. Salva.
Viva de novo.
— Hmm? — eu me obrigo a responder. Não é realmente um som, mas é o máximo
que posso fazer.
Não quero falar, não estou preparada para as palavras. Elas machucam e o
silêncio é mais seguro. É minha punição e ao mesmo tempo meu refúgio.
— Como você está? — ele me pergunta, uma de suas mãos acariciando meu
cabelo levemente e a outra esfregando a pele do meu braço, tentando me aquecer
um pouco na noite que começa a ficar fria.
Estamos sentados no chão no canto mais isolado do estacionamento, onde eu
tinha trazido Marina para conversar. Em algum momento que eu não registrei, ele
esticou as pernas atrás de mim e me acomodou em seus braços de um jeito que eu
quase estou em seu colo. Agora que o turbilhão de emoções violentas se acalmou,
percebo isso e fico um pouco envergonhada, ao mesmo tempo em que nossa
proximidade faz alguma coisa estranha com o ritmo das batidas de meu coração.
Exceto por isso, estou no mais completo silêncio há algum tempo, desde
que parei de chorar. Primeiro meus soluços se acalmaram, sufocados no peito
dele, depois as lágrimas foram aos poucos diminuindo até deixarem de cair. Eu
queria ficar assim por quanto tempo pudesse, com medo de me mover ou de dizer
qualquer coisa que quebrasse o encanto, mas preciso dizer algo que responda a
pergunta. A voz dele é tão suave e cautelosa ao romper meu silêncio, que eu me
sentiria ingrata por deixá-lo sem uma resposta.
“Péssima”, quero responder, mas na mesma hora em que a palavra se forma
em minha mente sei que isso não é mais verdade. Há certos tipos de dores que ou
se tornam parte de você ou te matam e, bem, eu não estou mesmo morta, estou?
Embora eu esteja me sentindo assim, sei que posso, em algum momento, me
levantar daqui e lidar com isso.
— Melhor — consigo dizer, e já que estou dizendo a verdade... — Porque
você está aqui. Você... Isto... É bom. Obrigada.
Sinto-me ridiculamente tímida depois dessas palavras e fico grata por não
estar vendo o rosto dele ou ele o meu. Ainda assim, sinto o ritmo de meus
batimentos cardíacos dar outro solavanco quando ouço o sorriso na voz dele.
— Também não estou achando isto ruim. Então acho que sou eu que agradeço.
Ah, meu Deus!
Uma parte de mim quer sair por aí dando pulinhos. Sinto um impulso
ridículo de ir contar tudo a Paty, como uma garota que quer dividir as coisas
com a melhor amiga. O pensamento faz eu me sentir estúpida e inconsequente por
estar me permitindo ter sensações tão adolescentes, sensações que não pertencem
a alguém que trapaceia a idade como eu. Felizmente, a maior parte de mim ainda
está, por incrível que pareça, ancorada à realidade, e eu consigo não embaraçar
a mim mesma ainda mais com esses pensamentos tolos.
— Você vai me contar o que houve? — Eric questiona, mas sei que ele já
conhece a resposta. Não é como se eu fosse do tipo que sai por aí divulgando os
sentimentos, e ele sabe disso.
— Desculpe — digo, e espero que ele saiba que não é só por guardar a
verdade para mim mesma, mas porque ele teve que me assistir desabar tão
violentamente, escorada apenas na sustentação que a força dele me deu. Essa
força incandescente que exala dele e que eu desejei toda para mim, para que
pudesse me fazer inteira novamente.
— Um dia então, Luz. Mas quando esse dia chegar eu vou quebrar a cara de
quem te machucou.
A voz dele é dura e eu me assusto com isso, porque sei que ele está
falando sério. Não é uma ameaça vazia ou algo que ele esteja falando para me
fazer sentir protegida. Há uma violência real e incontida por trás dessas
palavras e isso faz um arrepio subir por minha coluna, como se alguém estivesse
passando a ponta de uma lâmina afiada na pele de minhas costas.
— Ninguém me magoou, Eric. — Não sei o que ele pensa que aconteceu
comigo, mas eu não estou disposta a deixá-lo pensando que existe outro culpado
pela minha situação além de mim mesma. — Fui eu que fiz isso. Reencontrei uma
amiga esta noite e tivemos que remexer em coisas dolorosas. Mas fui eu que a
magoei e não o contrário.
Ele não responde e o silêncio se estende por alguns minutos antes que eu
consiga sentir seu corpo relaxar novamente quando ele solta o ar, resignado.
— Bem, sweetheart, eu não me
importaria de ser flagrado num canto escuro com uma mulher linda nos braços,
mas você sabe que já devem ter dado pela nossa falta. Realmente não ligo, mas,
de qualquer forma, não podemos mesmo ficar aqui para sempre.
Ouvir isso é como ser empurrada para fora de nossa própria bolha, aquela
em que só nós dois existimos. Sei que ele está certo, mas não quero sair daqui.
Não quero que este momento acabe e eu tenha que voltar a encarar o mundo longe
dele. O pensamento me dá arrepios e outra vez eu desejo poder ter a força deste
homem só para mim.
“Não”, eu penso enquanto tudo em mim se revolta com a perspectiva do novo
rompimento. Estou de volta à sensação de queda livre de antes. Começo a tremer
e me agarro a ele, prendendo seus braços ao redor de mim com minhas mãos.
— Só preciso de um minuto — digo, na esperança de que um pouco mais de
tempo possa me pôr no estado de espírito para enfrentar o fim disso. Já dói
tanto me separar dele que nem quero imaginar.
— Acho que você precisa de mais do que um minuto — Eric diz.
Ele me abraça apertado e acho que o sinto beijar meus cabelos, mas não
tenho certeza porque o movimento é sutil demais em contraste com a força do
abraço. Ainda estou tentando me conformar com a ideia de que isso vai acabar
logo, quando ele toma a decisão por mim e me afasta um pouco de si, apenas para
alcançar o celular no bolso de trás da calça.
— Vou levar você pra casa, ok? Vou ligar pro Samuel e dizer que você está
passando mal ou algo assim e que precisa de uma carona. Paty e Lara podem
dividir o seu setor por hoje. Você está precisando descansar.
Não acho justo, não quero que elas trabalhem dobrado por minha causa, mas
gosto da ideia de ter mais tempo com Eric. Além do mais, a verdade é que estou
mesmo precisando do sossego da minha casa. Barulho e música alta não combinam
com o que...
Ai, não!
Quando penso na música finalmente me lembro de quem está cantando. Mesmo
daqui, posso ouvir a voz rouca e aconchegante de Caio e não posso deixar que
ele suspeite de nada. Eric ainda está sentado no chão perto de mim e uma de
suas mãos ainda está enlaçada à minha cintura, mas a outra já está percorrendo
a tela do celular em busca do número de Samuel.
— Não — peço num tom urgente quando seguro sua mão, tentando impedi-lo de
ligar.
— Não o quê? — ele pergunta meio surpreso e parecendo nada satisfeito por
eu estar tentando impedi-lo de fazer o que quer.
Eric não gosta nada disso, mesmo em relação às coisas mais simples já
pude perceber que ele não gosta que digam a ele o que fazer ou que interfiram
em suas ações. Embora eu reconheça que esse é um defeito dele, não me incomodo
com isso e nem estou particularmente empolgada em frustrar esses planos
específicos, muito menos hoje, mas preciso falar com Caio. Tenho que saber se
ele sabe que os pais estiveram aqui, se Fernando foi embora também e o que
disseram a ele sobre o motivo.
— Não ligue para Samuel, eu já estou bem para voltar ao trabalho. Hoje é
sábado e não dá pra deixar tudo assim.
— Baby, não se ofenda, mas você começou a tremer quando eu insinuei que
era hora de voltar pra dentro. Você não quer me dizer o que aconteceu, mas não
me trate como se eu não soubesse que você está um trapo!
Ai.
— Não, Eric. É sério, eu estou bem. E meu amigo está tocando lá dentro,
não quero sumir sem dar explicações...
— Ah, claro, o garoto.
Quando diz isso, ele não lembra em nada o homem de minutos atrás. Num
instante ele já está de pé, cambaleando um pouco, provavelmente porque, como
eu, ele deve estar dolorido por estar na mesma posição há muito tempo. Ele me
estende a mão e me iça para cima e eu sei na mesma hora, pela expressão no
rosto dele, que nosso momento acabou tão rápida e desavisadamente quanto o
humor dele mudou. Sinto o desamparo da ausência dele tão forte que parece que
me falta um pedaço que eu nem sabia que tinha.
— Eric... — tento dizer alguma coisa, mas ele finge que não me ouve.
— Então se você acha que já está bem para trabalhar, melhor assim.
Ele ajeita minha camiseta torta e coloca uma mecha que tinha escapado do
meu rabo de cavalo atrás de minha orelha. Tento segurar a mão dele, mas não
consigo, porque ele se afasta rapidamente de mim, parecendo ocupado enquanto
tira a poeira das próprias roupas. Ele começa a caminhar sozinho em direção à
entrada, mas há alguma coisa de instável em seus movimentos e ele para,
aparentemente tentando retomar o equilíbrio. Obrigo minhas pernas a correrem
até ele, puxo-o para mim e a luz de um dos postes incide em cheio em seu rosto,
me assustando.
— Eric, o que foi? Você está bem?
Só agora, sob a luz, percebo que ele está mais pálido do que o normal e
que seus olhos estão fundos e cansados. Ele parece por fora como eu me sinto
por dentro.
— Estou bem — ele diz. — Só bebi demais esta noite.
Sei que é mentira. O cheiro dele está em minhas roupas e ainda posso
sentir o calor de sua respiração em minha pele. Eu teria sabido se ele tivesse
tomado uma gota de álcool que fosse. Além disso, já deu para perceber que Eric
não é do tipo que fica bêbado fácil.
— Não minta para mim — disparo num impulso de ousadia. — Você não está
bem. Deixa eu te ajudar...
— Não tenho nada, Clara. Já disse.
Ele diz isso como se o assunto estivesse encerrado e vai embora, enquanto
fico aqui, alquebrada e envergonhada. Do jeito que vejo as coisas, Eric me deu
um refúgio, um momento de beleza e paz no que deve ter sido uma das piores
noites de minha vida, e eu estava tão centrada em meu próprio sofrimento que
nem percebi que ele também precisava ser salvo.
Detesto ser esta pessoa que se permite não olhar em volta, detesto que
ele esteja precisando de mim e eu não saiba o que fazer para ajudar. Tudo em
que consigo pensar quando ele finalmente some de vista é em como eu gostaria de
poder ver o que vai em seu coração, em como seria maravilhoso se ele
simplesmente me deixasse entrar. Mas as coisas não tendem a ser simples assim,
não é?
E agora há mais uma coisa para meu próprio coração carregar através da
noite.
[1] Não sei
a Clara, mas eu tirei essa frase de um verso de In These Arms do Bon Jovi, do
álbum Keep The Faith de 1992.
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