sábado, 4 de abril de 2015

ELS Cap 19

Capítulo 19 – Salva

Hang me down...
by the riverbed
with the other dead
I will die without a sound
Save me
Save me
(Save me – 30 Seconds To Mars)

Não, meu Deus! Não! Não assim! Eu queria que Beto estivesse aqui ou que ao menos Caio já soubesse da verdade. Não posso fazer isto assim, não estou preparada. Por que o Senhor escolheu esta maneira? O que eu faço? O que eu faço?

Por apenas um momento, o mais breve de todos, tudo parece mágico. Ela me oferece uma migalha de paz na forma de um quase sorriso, mas é tão rápido que pode ter sido uma ilusão. Apenas uma miragem dolorosa que se afasta de mim à medida que caio mais e mais fundo no buraco que eu mesma cavei.
Sinto vontade de ir até ela e abraçá-la. E na mesma intensidade tenho vontade de fugir. Meu corpo está preso entre dois desejos que o partem ao meio. Por fim, não sucumbo a nenhum. Continuo onde estou e é ela quem se levanta, o rosto tão bonito, cada vez mais à medida que se aproxima, traz um olhar turvo de mágoa e confusão.
Ela para à minha frente e me examina. Sinto-me como se não estivesse ali, como se aquilo fosse um filme com uma péssima trilha sonora, composta por vozes se misturando em burburinhos indecifráveis e por alguma coisa que pulsa com força em meus ouvidos. No fundo de tudo, abafada pelo meu pânico, a voz dela:
— É mesmo você... — Não é uma pergunta, tampouco é uma afirmação. É uma acusação. Quase como um desafio, ou, antes, um pedido desesperado para que eu negue, para que diga alguma coisa que faça parar o que está acontecendo conosco neste momento.
Estou me destruindo na frente dela. A imagem que ela criou de mim se desfaz, pedaço por pedaço.
Quero dizer que houve algum engano, que ela não me conhece e que está me confundindo. Mas como posso? É inútil agora. A expressão dela é a mesma da menina assustada que acordou em meu sofá vinte anos atrás. Incompreensão. Por que estou fazendo aquilo com ela? “Quem é essa maluca e o que quer de mim?”
Do pó ao pó.
— Podemos conversar lá fora? Por favor?
Não fico para ouvir a resposta. Reúno todas as forças que tenho e sigo em direção ao estacionamento de funcionários, o lugar mais privado que vamos conseguir neste momento, sem olhar para trás. Percebo que ela está bem atrás de mim, mas meu coração dói quando concluo que, apesar de ela estar vindo comigo, seus olhos não deixam que eu me engane. Ela não vai entender. Não quer.
— Como isso é possível? — ela pergunta, antes mesmo de chegarmos ao ponto mais afastado e escuro que consigo encontrar, antes mesmo que eu possa me virar para olhar de novo para ela. — Você está exatamente igual a quando nos conhecemos! Mas... Era pra você...
— Ter quase 50 anos agora? Tenho 60, na verdade.
— Como... O que é você?
— Eu queria te contar naquela época... Eu teria te contado, mas...
— Você nos abandonou. Você foi a primeira pessoa em quem confiei de verdade na vida, e você me abandonou!
Os gritos dela, cada palavra, eram como facadas que abriam antigas feridas. A pele fina que havia se criado sobre elas esfacelava-se e era como se eu pudesse ver meu sangue jorrando através da carne aberta.
Tanta culpa, meu Deus! Tanta culpa que eu tinha mantido sufocada sob minhas boas intenções.
— Por quê? — ela exige, a voz baixa e fria, a pergunta ardendo em mim como gelo em contato com a pele.
— Porque foi preciso. Porque eu precisava voltar para vocês quando Caio estivesse preparado. Não antes. Eu fiz isso por ele.
— Como você pode dizer isso? Como você pode dizer que nos abandonou porque... porque...
— Caio e eu somos diferentes. Esta quase imortalidade que você vê, é isso o que Caio vai ter. Ele será jovem por quanto tempo quiser.
A verdade começa a escorrer descontroladamente de mim quando estamos aqui fora nos encarando. Entretanto, nada disso parece fazer sentido para ela, que me olha com o mesmo olhar paciente com que se tolera os dementes.
Eu queria que fosse diferente, que isso não fosse assim, no escuro, depois de um encontro tão desconcertante quanto um susto. Mas não há nada que eu possa dar a ela agora a não ser a verdade, por mais brusca e crua que ela seja.
— Somos anjos, Marina. Caio e eu. É isso que eu estou destinada a fazê-lo entender. E a você também. É isso que eu estava fazendo há vinte anos, cuidando de você e zelando por ele.
— O quê?
Sua voz não é mais do que um sussurro que escapa de uma garganta dolorida, mas então ela começa a rir baixinho, balançando a cabeça de um lado para o outro e sua voz soa menos estrangulada e mais confiante de repente.
— Não. Você está bêbada. Ou drogada. Você é só uma maluca que envelheceu bem demais.
— Marina...
— Eu tenho experiência com gente assim, como minha mãe, lembra? Só não imaginava que você... Não me interessa também! Você vai ficar longe. O meu filho não vai passar nenhum segundo a mais perto de gente como você.
O choque a está deixando histérica, tenho que controlá-la, mas não sei como. Assim como está, não há nada mais que eu possa dizer que ela esteja em condições de ouvir.
— Eu vim aqui... Nós viemos fazer uma surpresa para nosso filho. Vê-lo tocar e conhecer a menina por quem ele está apaixonado, mas aí...
Então ela para. Quando menciona a “menina” por quem Caio está apaixonado, ela entende que sou eu e o pânico cresce mais um pouco dentro de mim.
Ela apenas me olha, mas só isso já dói, porque os olhos dela me ferem mais do que punhos. Há coisas demais passando por eles. Tantas coisas que, mesmo na parca iluminação da noite, eu vejo. Confusão, mágoa, raiva... Nojo.
Marina sente nojo de mim e isso me transforma por dentro. Sou alguma coisa antes desse olhar e não sou mais nada depois.
Estou simplesmente parada aqui enquanto observo o chão se desfazer ao meu redor e o rosto dela se contorcer numa careta de ódio. Nunca ninguém me dirigiu esse sentimento, mas não me engano sobre ele. Eu sei. Apenas porque já vi o oposto no rosto dela. Eu já fui sua família. Já fui quase tudo o que ela tinha além de si mesma.
Ela começa a se virar para ir embora, mas muda de ideia. Lá no fundo da escuridão, uma quase esperança se acende. Não é nada. Nada. Apenas uma faísca pálida e tudo isso é apenas um segundo entre nós. Tão rápido que parece nunca ter existido. Tão rápido que...
Nem vejo quando a mão dela desce com toda força sobre meu rosto.
É rápido e explosivo como um avião que despenca do céu. E não dói. Não sinto nada porque eu toda sou um talho aberto e não há espaço para mais dor.
Marina começa a chorar. Soluços descontrolados de arrependimento e revolta que a fazem se dobrar sobre si mesma. Quero chegar perto dela e ampará-la. Quero dizer que a entendo, que a perdôo pelo que acabou de acontecer e por qualquer outra coisa que ela ainda possa fazer, mas apenas continuo parada.
Eu não choro.
Dentro de mim os sons perderam o sentido e a linguagem não tem mais razão de ser. Por isso não choro, nem digo nada. Há apenas o som da dor dela e o silêncio sepulcral sobre a minha. Estou enterrada sob camadas e mais camadas de terra que me sufocam.  Acho que estou morta.
Ela levanta os olhos em minha direção uma última vez, mas não me olha realmente. Quem sabe veja qualquer coisa além de mim. Talvez esteja fazendo uma oração silenciosa ao pé da lápide que eu imagino sobre a terra que pesa em minha dor.
Então ela se levanta e vai embora. Sai rapidamente em direção à rua com os braços em volta de si mesma e, naquele momento, ela volta a ser a menina desamparada do primeiro dia. A mulher confiante e firme que ela se tornou se esconde sob os cabelos que caem em seu rosto e se grudam em suas lágrimas. Ela desaparece e eu não consigo dizer nada.
Acabou.
Depois do fim, o mundo recomeça a girar, mas eu permaneço onde estou. Aos poucos, o frio da noite vai penetrando meus sentidos e meu corpo sucumbe ao seu peso. Sinto o chão sob meus joelhos e é como eu sei que ainda estou aqui e que a vida não fugiu pelas minhas veias expostas. Sinto a dor daquele encontro se espalhar por mim, como se tivesse sido contida por um torniquete e agora clamasse por liberdade. Vou sendo preenchida por esse sentimento como se ele estivesse substituindo meu sangue.
Ao meu redor, o mundo continua como se nunca tivesse parado e eu ouço seus sons, mesmo sentindo como se não pertencesse mais a ele. São sons de vida pulsante que ferem ainda mais meu coração partido, rasgando seu silêncio como vidro sendo estilhaçado numa sala vazia. Os carros passando lá fora, as pessoas se divertindo no bar, os acordes pesados da música que começa a tocar, o som de passos pesando sobre as pedras do chão...
Eu só quero que tudo se cale.
— Oh, shit! CLARA!!!
Eric. Eu sabia que era ele antes mesmo de ouvir sua voz. Vejo seus pés quando ele para à minha frente, sei que devo reagir, dizer alguma coisa, não posso ficar aqui no chão para sempre...
— O que aconteceu? Clara, olhe para mim!
E eu tento, juro que tento, mas não consigo me mover. Então ele se ajoelha à minha frente, tocando-me cuidadosamente, checando se estou machucada talvez, mas acho que ele não pode ver a ferida que me tornei, nem eu tenho forças de dizer a ele.  Por fim, ele segura meu rosto entre as mãos, me forçando a olhá-lo. Algo se rompe dentro de mim quando sinto sua pele, quando vejo seus olhos preocupados. Tem alguma coisa nele que derruba minhas barreiras, sempre, e finalmente eu não aguento mais. Toda a dor escorre por meus olhos, queimando meu rosto e inundando as mãos dele.
— Clara, por favor, eu não sei... Me diga o que fazer. O que você quer que eu faça?
Ele parece tão perdido! De repente, estou nadando sem rumo no oceano de seus olhos, mas ele está lá também, bem ao meu lado, precisando de uma resposta.
Então eu penso sobre isso. Na resposta e em tudo o mais. Em Eric aqui comigo me ajudando a respirar e em como me senti em todos esses dias em que ele se manteve distante, como se não quisesse ter nada a ver comigo. Penso em Marina e no olhar de desprezo dela gravado em minha memória, sendo reprisado a cada segundo diante de meus próprios olhos. Penso em Caio, feliz lá dentro, acreditando que um dia eu serei sua namorada e que ele logo vai me apresentar a seus pais, que eles vão enxergar a mesma pessoa que ele vê e, eventualmente, vão me amar como ele me ama. Que eles vão me abraçar como parte de sua família.
E quando penso nessa última imagem, quando ela se enraíza em minha cabeça, é que a compreensão me atinge. Eu quero o oposto de todas essas dores e expectativas despedaçadas. Quero nunca sentir novamente o que estou sentindo agora. Não é tão simples, eu sei, mas tampouco é impossível, é?
Talvez eu seja ingênua, mas quando você abre mão de tudo o que tem em prol de quem você é, não parece tão errado assim. Não parece algo pelo que ser odiada. Eu fiz o que fiz porque queria que Caio tivesse uma escolha, a mesma que eu tive.
Não é como se eu nunca tivesse imaginado este cenário: Marina me descobrindo sem que eu estivesse preparada para isso e as coisas dando tão errado quanto podiam dar. Mas você pode imaginar uma coisa centenas de vezes e, mesmo assim, nunca vai saber o que sentirá quando realmente acontecer.
Ver ódio nos olhos de quem você ama é como ser atingida por um trem. E não ajuda em absolutamente nada que você estivesse parada nos trilhos o tempo todo. Muito menos quando você sempre quis acreditar que o trem ia parar quando chegasse a hora, e que o maquinista ia descer para bater um papinho e saber o que te levou a ficar ali, no caminho do choque.
Eu tinha feito o que achava certo, tinha partido mesmo quando tudo o que eu queria era ficar. Eu teria contado a ela se pudesse, mas como obrigá-la a viver a vida que eu levo? E quando Caio nasceu e eu soube que ele era igual a mim, como eu poderia influenciar suas escolhas futuras através da verdade sobre quem eu era, de minhas dores e alegrias? Claro que eu podia ter me tornado humana por eles, mas eu não estava pronta. Sentia, como ainda sinto, que não era a hora. Que deixar de ajudar aqueles que estavam destinados aos meus anos futuros seria egoísta. Tanto quanto a verdade. Tanto quanto qualquer mentira.
Eu sabia que ela se sentiria amedrontada e sozinha, que sentiria minha falta, mas Marina sempre foi a pessoa mais forte que conheci. Ela sobreviveu àquela infância terrível, àquela casa, àquele desamor, e se manteve pura, limpa, boa e corajosa. Ela não precisava de mim. Nunca precisou realmente. Eu sempre soube de que barro ela era feita e que era inevitável que ela se erguesse altiva de quaisquer que fossem as cinzas.
Então eu convenci a mim mesma de que era o melhor a fazer e parti. Abri mão deles e tentei tomar a decisão menos egoísta que encontrei, mesmo que meu coração se dilacerasse no processo. Aquilo me destruiu, mas eu fiz mesmo assim, porque foi o jeito que encontrei de todos os outros ficarem bem.
Exceto que ela não ficou. Nem eu. Ou mesmo Caio, que parece tão distante e alheio ao destino pelo qual me sacrifiquei. Ela me odeia, ele não faz ideia de quem eu sou e, pela primeira vez na vida, eu sinto que o certo é a coisa mais errada que existe. Que altruísmo dói e que minha própria felicidade deveria valer alguma coisa, afinal. Que eu posso desejar que fique tudo bem para mim também.
É isso o que eu quero.
Quero saber como é ser amada e não me machucar. E quero nunca mais perder ninguém, como quem pode ser egoísta às vezes. Quero me sentir vulnerável sem sentir medo disso, porque quero alguém que cuide de mim como Eric está tentando fazer agora, enquanto enxuga minhas lágrimas com as costas da mão.
“Quero você, Eric.”
Subitamente, eu encontro minhas palavras. Ainda não sei onde está minha voz, mas por dentro estou gritando.
“Preciso de você.”
E de alguma forma, é como se ele me ouvisse, como se entendesse.
Ele desloca seu peso e está agora ao meu lado. Sinto a aspereza do jeans quando seus joelhos tocam o lado de minha coxa e, de repente, ele está mais perto do que nunca esteve. Um de seus braços enlaça minha cintura enquanto o outro está sobre meus ombros e muito devagar, como se fôssemos placas tectônicas se acomodando ao longo de milhões de anos, ele me puxa para si e eu me deixo ir, deitando a cabeça em seu ombro.
Ele apoia o queixo no topo de minha cabeça e posso sentir sua respiração esquentando meus cabelos. É entrecortada e incerta, como a de quem correu milhas demais para encontrar algum lugar, e aquele é o momento mais íntimo que eu já vivi. Sinto seus dedos me afagarem suavemente e relaxo em seus braços, afundando em seu cheiro. Quando eu faço isso, os músculos de seu peito se enrijecem bruscamente, mas logo ele relaxa também, suspirando de leve enquanto me fecha um pouco mais em seu abraço.
Ele é... Eu estou...
As palavras me fogem novamente, mas tenho a sensação de que elas seriam mesmo inúteis aqui. Meu coração canta sem som e o dele me ouve. E isso basta.
Ficamos assim por muito tempo, nem sei quanto. Mas, para mim, é como se eu tivesse encontrado o ar antes de saber que precisava respirar.

E ali, naquela noite, ele me salva.

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