Capítulo 36 – Fique
All along it was a
fever
A cold sweat hot-headed
believer
I threw my hands in the
air I said show me something
He said, if you dare
come a little closer
Round and around and
around and around we go
Ohhh now tell me now
tell me now tell me now you know
Not really sure how to
feel about it
Something in the way
you move
Makes me feel like I
can't live without you
It takes me all the way
I want you to stay
(Stay – Rihanna)
Estávamos
brincando sobre o café irlandês, já que eu não tenho uísque em casa, mas ele
bem que viria a calhar agora. Talvez tornasse as coisas mais fáceis. Pelo menos
para Eric, que olha para a sala pequena como se estivesse enjaulado, estudando
o ambiente como se quisesse se certificar de que deveria estar realmente aqui.
Ele vai até a janela e
fica olhando para a noite lá fora por um tempo. Observo seu jeito, as mãos nos
bolsos de um jeito que projeta toda sua tensão na linha de seus ombros, a
cabeça que se abaixa depois de alguns segundos, parecendo reconsiderar quaisquer
que fossem suas certezas de agora há pouco.
Aproximo-me dele e o
abraço por trás, trançando minhas mãos em seu peito e apoiando minha testa na
curva entre suas omoplatas. Ele segura ambas as minhas mãos nas suas e eu
inspiro seu cheiro, esfregando de leve meu rosto em suas costas.
— Vou fazer o café — digo.
— Não — ele responde
ansioso, apertando meus braços em torno de si. Por fim, ele se vira para mim e
me abraça. — Fique comigo.
Assinto de leve olhando
em seus olhos e o beijo, querendo que ele entenda o quanto estou feliz que
esteja aqui, o quanto preciso disso tanto quanto ele. O contato é
inevitavelmente doce e inebriante, bem mais delicado do que antes, mesmo assim
mexe comigo.
— Como vamos fazer isso?
— pergunto quando nossos lábios se separam. — Por onde vamos começar?
Eric
continua segurando minhas mãos e beija a palma de uma delas antes de pousá-la
em seu rosto, tombando a cabeça e descansando ali por um segundo, com os olhos
fechados. Depois ele me solta e caminha até a poltrona do outro lado da janela,
de frente para o sofá onde costuma se sentar comigo ao seu lado.
—
Acho que pelo começo — ele diz, apoiando os cotovelos nos joelhos e me
encarando com um sorriso nervoso.
Sento-me
no sofá e revolvo meus pensamentos. Não sei nada sobre ele, então, na
realidade, qualquer ponto para mim é o começo.
—
Onde está Blue? — ele pergunta sem olhar para os lados, como se já tivesse se
dado conta dessa ausência há muito, mas só agora estivesse comentando. Talvez
para quebrar o gelo.
—
Está em um hotelzinho para cães. Eu não sabia quanto tempo ia ficar fora, então
achei melhor assim.
Eric
assente e continua me olhando, por fim apoiando-se no encosto da poltrona, mas
sua postura ainda não parece relaxada.
—
Como foram as coisas? Como está seu amigo?
—
Fora de perigo. Eu estava assustada, mas foi menos grave do que acreditei de
início.
—
Bom. — Sinto-o recolher-se um pouco para dentro de si mesmo quando observa a
expressão aliviada e terna que não consigo evitar quando falo de Caio. É então
que me ocorre a primeira coisa que preciso saber, ainda mais quando ele
continua: — Que bom que estão todos bem. Quero dizer, você e ele...
Seus
olhos se anuviam e seus lábios se apertam numa linha fina, enquanto ele parece
considerar alguma coisa que não diz. Seu olhar se desvia do meu pela primeira
vez desde que se sentou, e ele fica imerso em seus próprios pensamentos até que
os interrompo.
—
Você achou que eu fosse deixar você por ele, não é? Por isso estava aqui.
Eric
não responde com palavras, mas seu silêncio é esclarecedor o suficiente.
—
Você o ama — ele afirma, como se estivesse explicando a própria insegurança. Sinto
meu coração se apertar no peito por tê-lo deixado pensar assim.
—
Sim. — Não vou mentir e dizer que ele está errado, mas preciso que entenda como
as coisas realmente são. Para isso,
tenho que tirar as dúvidas do caminho. Especialmente essa. — Mas não do jeito
que você está pensando... Aquela noite no estacionamento, quando você me viu
chorando e eu mencionei que tinha discutido com uma amiga, você se lembra?
Pensar
naquilo faz coisas estranhas comigo, mas continuo falando quando ele assente,
sem dar tempo a mim mesma de reviver toda a confusão de sentimentos daquele
dia.
—
O nome dela é Marina. É alguém que eu amo como uma irmã, há muito tempo. E Caio
é filho dela. É como se ele fosse da família. Você entende?
— Acho que sim. — Eric
parece surpreendido com a informação, mas não diz nada a respeito. O que quer
que ele esteja pensando apenas guarda para si. Talvez esteja considerando que
uma coisa não necessariamente elimina a outra. Exceto que para mim elimina,
sim.
— Eu só quero você — me
apresso em afirmar. De repente, sinto vontade de que ele saiba especificamente
do que estou falando, mas não sei bem como me expressar. — Quero dizer...
Ahn... Desse jeito que você pensou que eu pudesse querer o Caio.
Ele
sorri da forma maliciosa que me desarma e me lembro do rastro quente de seus
lábios na pele do meu colo. Se eu fechasse os olhos agora ainda poderia sentir
tudo de novo.
Concentre-se!
Apesar
da ordem que dou ao meu cérebro, continuo pensando naqueles momentos lá fora,
mas não apenas na parte em que meu corpo meio que assumiu o comando, porque
antes disso outras coisas já tinham me provocado impressões profundas. Tento me
focar na pergunta que quero fazer, mas o que deveria ser simples acaba não
sendo.
Como já estava previsto, aliás.
—
Você não parecia bem quando eu cheguei. — É difícil encontrar uma forma de
perguntar isso sem parecer que o estou julgando, mas me esforço para ser
direta. Pelo menos o máximo que consigo. — O que estava acontecendo com você? O
que você estava fazendo?
Ele
morde o lábio e olha para o outro lado — é curioso como parece quase infantil
dessa maneira —, depois volta a me encarar do jeito mais frio e distante que
consegue, o que, felizmente, não é muito neste momento.
—
Eu... às vezes tenho necessidade de organizar as coisas. É só... só um jeito de
equilibrar minha cabeça quando estou confuso.
—
Fui eu que fiz isso com você? — Minha voz é baixa e se quebra no final. Não
quero que ele sofra por motivo algum, mas a ideia de causar esse sofrimento...
—
Não! — ele me interrompe o pensamento. — Você não tem nada a ver com minhas
neuras.
—
Não fale assim! Não chame o que você sente de neuras, por favor.
—
Certo.
Ele
dá um risinho amargo e sei que está se segurando para não dizer algo cínico e
autodepreciativo. Isso às vezes me incomoda muito, mas reconheço o esforço que
ele faz e prefiro, por minha vez, não dizer nada que possa fazer com que ele
volte a se fechar.
— Você estava pálido.
Achei que estivesse doente — digo, porque embora sua aparência neste momento
esteja consideravelmente melhor, naquela hora fiquei realmente preocupada.
—
Eu estou bem agora. Era só uma dor de cabeça. Tenho isso às vezes.
—
Como na noite em que você me disse que tinha bebido demais. — Não estou
perguntando, sei que ele estava mentindo para mim naquele dia. — O que causa?
—
Resistência baixa — ele responde, sorrindo porque sabe que não faz sentido. — É
um tipo de enxaqueca. Já estou me tratando. Vou ficar bem.
—
Só estou preocupada com você...
—
Do resto também. Pode acreditar — ele parece ansioso em esclarecer, como se
estivesse envergonhado da fragilidade que me deixou ver.
—
Eu não me importo que você tenha problemas. — Finalmente me canso da distância
que Eric nos impôs e vou até ele, me aconchegando em seu colo quando ele me
abre os braços. — Quero ajudar.
—
Você já ajuda. Me sinto melhor quando estou com você. — Lentamente seu nariz
percorre minha clavícula provocando arrepios à medida que o calor de sua
respiração me toca. Aconchego seu rosto na curva de seu pescoço, acariciando
seus cabelos. — O silêncio daqui é bom.
—
Então você pode ficar o tempo que quiser — sussurro.
—
Eu posso querer ficar mais do que devo — ele rebate. E sei por seu tom de voz
que não são só os meus pensamentos que voam para direções de onde é difícil
puxá-los de volta.
Seus dedos descem o vale
entre meus seios, depois entram sob a blusa, fazendo o contorno da linha do
jeans. O calor se espalha em mim e depois se concentra sob sua mão espalmada em
meu ventre quando ele parece esquecê-la ali. Pego-me imaginando como seria se...
—
Você nunca me falou sobre sua família — forço-me a dizer para não me perder em
pensamentos lascivos, mas então percebo que quero mesmo saber.
—
Sou filho único. Minha mãe morreu.
—
Sinto muito.
—
Eu não.
A
frase me choca, mas me dói ainda mais. De repente, fico fria e exausta de novo,
como se o frio viesse dele e eu simplesmente não fosse forte o bastante.
—
Por quê?
Não
há forma suave de perguntar.
—
Ela não gostava de mim.
Nem forma suave de responder, aparentemente.
—
Depois de um tempo, eu simplesmente parei de me importar — ele completa.
Fico
sem saber o que dizer. As palavras não encontram correspondência em minhas
concepções. Penso em minha mãe, em Marina e nos meus próprios sentimentos por
Caio. Em toda a minha vida, só conheci amor e, por isso mesmo, sei que não
tenho nada a dizer para quem não conheceu o mesmo. Não tenho o direito de achar
que sei como Eric se sente e nem de contestar sua percepção, por mais absurdo
que me pareça que a mãe não o amasse.
—
Sinto muito — repito como um disco riscado, sem ânimo para mais do que verdades
básicas.
—
Ela se apaixonou por um cara, um brasileiro — ele diz. — Então se casou com ele
e veio para cá. — Era um empresário rico e eles se casaram quando ela ficou
grávida de mim. O cara achou que eu era filho dele, mas depois de um tempo
ficou óbvio que não. Aí ele a deixou e ela me culpou por isso.
—
Como é que pode ter ficado óbvio? Como ele pôde ter certeza?
—
Ele conheceu meu pai biológico e dizem que eu sempre fui igual a ele.
—
Mas...
—
Acredite, ela foi estúpida o suficiente para isso — ele ri de um jeito amargo e
cínico que não me soa em nada como o Eric que conheço. — Simplesmente o traiu e
tentou a sorte quando descobriu que estava grávida, mas a semelhança com o
outro era grande demais.
—
E o que aconteceu?
— Com o divórcio, ela
ficaria com um bom dinheiro, porque ele não se importava com quanta grana
tivesse que dar, só queria que ela desaparecesse. Mas isso não foi motivação o
suficiente. Nós continuamos morando aqui, porque ela acreditava que ia
conseguir reconquistá-lo, o que nunca aconteceu, porque toda vez que ele
tentava, olhava para mim e se lembrava do outro.
—
Você chegou a conviver com esse homem?
—
O nome dele era Paulo. É Paulo. Ele
está vivo ainda, acho. Sim, durante os meus três primeiros anos, mas eu não me lembro,
obviamente.
Penso
no quanto me custou deixar Caio para trás e não consigo conceber como esse
homem que por um tempo acreditou que Eric era seu filho pôde deixá-lo, apesar
de tudo. Sei que o mundo é assim, mas o amargor disso não me desce a garganta
com facilidade. Ao contrário, fica parado ali, na forma de palavras que não
consigo guardar para mim.
—
Eu entendo que ele tenha deixado sua mãe, mas como pôde esperar por você,
conviver com você, acreditar por três anos que tinha um filho e...
—
Não sei se ele alguma vez acreditou de verdade. E, sinceramente, Luz, para ter
se casado com minha mãe ele não devia ser exatamente boa pessoa. Só sei que ele
nunca me procurou e sempre deixou claro que me queria longe, então quando
completei a maioridade excluí o sobrenome dele da minha certidão. Aí, quando um
tempo depois minha mãe morreu, eu pude esquecer que os dois existiam.
—
Como era seu nome antes?
—
Eric Joseph Morgan Barros, filho de Shiobban Morgan e de um filho da puta
qualquer.
—
Não, Eric Joseph... — Paro sorrindo ao ouvir o som da minha voz ao dizer o nome
dele. — Gostei disso. Eric Joseph Morgan, amado pela Clara Bueno Felix. É assim
que você deve se apresentar no futuro.
Ele
ri. Um som alto e espontâneo que não achei possível quando o encontrei arrasado
à minha porta. De repente, aquele som que me embala está de volta e seus olhos
se fixam nos meus com um misto de emoções desconhecidas que ameaçam extravasar.
É então que percebo que acabei de dizer uma coisa. Indiretamente, é claro, mas
eu disse. E agora não sei como reagir aos olhos marejados dele.
—
O som disso é definitivamente melhor — ele conclui, então me beija, os lábios
devorando os meus, os braços me levantando e me carregando, apertada contra seu
peito, até o sofá. — Não estamos parando de conversar, ok?
Balanço
a cabeça em concordância enquanto ele se deita sobre mim, encaixando-se
habilmente entre minhas pernas, aconchegando-se em meu corpo como se fosse um
hábito.
—
Mas é que agora... — Seus lábios prendem o lóbulo da minha orelha e por um instante
esqueço de qualquer coisa que não seja essa sensação e o peso dele sobre o meu.
— Agora eu preciso de você. Preciso que você entenda o quanto é importante, o
quanto eu...
Um
som inesperado atravessa meus ouvidos, penetrando através da voz de Eric que me
deixa zonza. É uma música. Ele para. Meu corpo protesta.
—
Seu celular — ele diz, esticando o braço sobre minha cabeça para alcançar minha
bolsa sobre a mesinha ao lado do sofá. O atrito de seu corpo alongando-se sobre
o meu é breve demais, e de repente a bolsa está no chão ao meu lado, enquanto
olho para o maldito barulho insistente decidindo se cedo ou não ao impulso de
ignorá-lo.
As
mãos de Eric percorrem meu corpo, sobre o jeans e por baixo da blusa, e ele aperta
minha cintura e se encolhe sobre mim, apoiando a testa sobre minha barriga e
soltando uma risada cansada que faz cócegas em minha pele exposta.
—
Esta droga de sofá deve ter algum alarme — resmunga.
Depois
se levanta da forma mais elegante que as circunstâncias permitem e vai até a
janela outra vez.
Ar fresco. Seria uma excelente ideia. E
silêncio também.
Sento-me, atordoada, e começo a
remexer minha bolsa para calar aquela música que pretendo deletar da minha
memória de hoje em diante. O celular para de tocar no instante exato em que o
localizo no meio da minha bagunça e eu congelo com ele em minha mão, a um
segundo de ter um chilique de novela e jogá-lo na parede. Como se eu fosse
mesmo capaz de fazer uma cena ridícula dessas! É só que... Gah! Como é bom
quando estamos juntos! O maldito celular tinha que atrapalhar?
Eric
olha para mim com o canto dos olhos e percebo que está segurando o riso, não
sei se por causa da minha reação ou pela situação frustrante que não deixa de
ser engraçada. Começo eu a rir, porque a cara dele tentando se manter sério é
hilária, e nós dois explodimos numa gargalhada nada contida, diferente de
outros impulsos que sempre acabamos nos obrigando a guardar.
Ainda
estamos rindo quando ele se senta ao meu lado e passa o braço por meus ombros,
me dando um beijo casto no topo da cabeça.
— Foi melhor assim — diz.
— Eu nunca penso direito quando estou desse jeito com você. Às vezes acabo
forçando a situação.
Quero dizer que ele não
forçou situação nenhuma, que o que quer que acontecesse entre nós teria
acontecido naturalmente, mas então percebo que estou sendo egoísta. Embora seja
nítido o quanto é difícil para Eric esperar, foi ele quem decidiu que devíamos
esclarecer as coisas antes. E há tantas coisas ainda encobertas entre nós que
nem sei por onde começar.
— Você já viu quem era? —
ele me lembra. — Talvez fosse alguma coisa importante.
Penso em Caio no hospital
e me sinto instantaneamente culpada. Quem sabe eles estejam precisando de mim
enquanto estou aqui pensando no melhor momento para levar um homem para meu
quarto. Tudo bem que é o homem que eu praticamente acabei de confessar amar,
mas ainda assim...
Finalmente tiro o celular da bolsa e vejo que
era Alberto, provavelmente querendo saber se cheguei bem. Porque, claro, ele
pediu para que eu ligasse, mas como consideração pelos outros não está sendo
meu forte nas últimas horas, eu esqueci completamente.
— É meu amigo Alberto —
explico, e Eric faz uma cara de quem não precisava de outro homem com quem ter
que se preocupar.
— Seu amigo? Eu conheço?
— ele joga. Percebo que esse é seu jeito de saber mais sobre Beto, mas sem dar
o braço a torcer de que possa estar com ciúme.
—
Não. Ele chegou ontem à cidade. Por coincidência, foi ele quem prestou os
primeiros socorros a Caio.
—
Como assim? Eles estavam juntos?
—
Eles nem se conhecem, foi apenas coincidência mesmo.
—
Ele viu quem atropelou o garoto? — A expressão de Eric é indecifrável, mas há
uma preocupação genuína em sua voz. O interesse dele pelo assunto, de certa
forma, me aquece o coração, embora eu não queira falar sobre isso agora.
—
Não — respondo simplesmente.
Não quero falar sobre a
suspeita de Beto e nem acho que consiga lidar com isso hoje. Só quero terminar
passar esta noite com Eric, seja como for, e deixar a angústia de lado por
algumas horas. Pensar sobre o atropelamento faz o cansaço do dia me pesar outra
vez e não percebo quando começo a esfregar meus olhos.
— Você está cansada, não
é? — Ele sorri, beijando minhas pálpebras. — E acho que quer falar com seu
amigo. Vou deixar você fazer isso.
— Não! Não vá embora, por
favor. Eu só preciso ligar para avisar que cheguei bem, depois voltamos a
conversar.
— Chegou bem de onde?
Do quarto de hotel onde passei a tarde com outro homem. Por
que não tenta essa?
“É, eu sei como isso
parece. Me deixa em paz, tá legal?”
— Eu estive com Alberto
hoje à tarde, depois que saí do hospital. É que ele veio para a cidade para me
visitar.
Eric estreita os olhos,
mas não diz nada. Apenas espera que eu esclareça. Penso em como ele estava
quando cheguei, atormentado pela ideia de que eu o trocaria por Caio. Tento me
colocar no lugar dele e percebo que, mesmo sem isso, eu não estaria gostando
nada desta conversa se fosse o contrário.
— Ele é meu irmão de
consideração. Era nosso vizinho e depois que meu pai faleceu, foi ele quem nos
ajudou a nos reerguer emocionalmente. Ele e minha mãe se amavam como mãe e
filho. E eu o amo como irmã.
É verdade. Quer dizer, a
parte sobre sermos vizinhos por um tempo e sobre como ele e minha mãe se
amavam. Na época em que perdi meu pai, este era um mundo pouco receptivo a duas
mulheres sozinhas tentando ser independentes. Beto realmente cuidou de nós como
pôde e tornou esse processo mais tranquilo para minha mãe. Apenas aconteceu há
muito mais tempo do que parece.
— Você ama todos os seus
amigos como se fossem da sua família?
— Não. Você eu amo de um
jeito diferente.
Não consigo evitar dizer
isso, e quando o faço vejo a mesma reação crescendo dentro dele. Emoção e um toque
de descrença que o sorriso dele empurra para o lado quase a tempo de eu não
perceber. Em resposta, ele não diz nada, mas aperta minha mão com tanta força
que chega a doer, como se estivesse em queda livre, tentando se segurar a mim.
— Seria legal se vocês se
conhecessem — continuo, tentando trazer seus pensamentos para uma coisa mais
banal, um porto mais seguro que o mar aberto em que nos encontramos. — Estou
querendo conhecer a namorada dele também. Quem sabe ela não vem até a cidade e
podemos todos fazer alguma coisa juntos?
Meu Deus do céu! Quando
foi que me imaginei tentando marcar um encontro duplo?
— Tudo bem, Luz, podemos
combinar alguma coisa — ele responde com um sorrisinho condescendente, mesmo
que não pareça muito animado.
Não me importo muito,
porém. No momento em que fiz a proposta, percebi o quanto essa sociabilidade
toda não é mesmo a cara dele. Mas o que realmente interessa é que ele parece
ter relaxado um pouco quanto a Alberto.
— Ouça, não estou fugindo
de conversar com você — Eric me diz, me puxando para um abraço e dando uma
mordidinha provocadora no meu queixo. — Muito menos quero ir embora daqui, mas
estou preocupado com você. Aposto que não dormiu nada hoje.
— Não dormi, mas ainda
aguento algumas horas. Só preciso de um banho e de uma roupa limpa. Me dê uns
20 minutos.
— Tudo bem. Você está com
fome? Porque eu bem que podia encarar uma pizza.
— Sim, parece uma boa
ideia. Eu tenho uns telefones ali naquela gaveta.
— Não, eu mesmo vou
buscar. Preciso ligar para Samuel e ver como estão as coisas no bar. E você
pode ligar para esse seu irmão torto, tomar seu banho em paz e descansar um
pouco enquanto me espera.
— Está fugindo de mim,
Senhor Morgan?
Ele ri. Depois se levanta
e segura meu rosto entre os dedos, me dando um último beijo antes de sair.
— Francamente, não acho
uma boa ideia eu ficar aqui enquanto você fica nua e molhada no outro cômodo. É
demais para mim em qualquer dia, mas hoje seria tortura cruel e desnecessária. —
Será que digo a ele que para mim também?
Não. Deixa pra lá. — Que pizza você quer?
— Hum, não faz diferença,
desde que não tenha carne. Pode escolher qualquer coisa.
— Qualquer coisa
vegetariana. Certo.
Enquanto ele está
destrancando a porta me lembro de algo.
— Eric?
— Sim?
— Não esqueça a chave.
Ele sorri para mim
daquele jeito só dele e sei que eu disse a coisa certa.
— É só emprestada — ele
retruca, mas seus olhos estão cheios de alegria. — Volto daqui uns quarenta
minutos.
Depois disso, ele sai e
fico sozinha com meus pensamentos, com sua história. E também com a minha, da
qual ele ainda não sabe nada. O que Eric pensaria de mim se soubesse que também
deixei para trás pessoas que considerava como filhos, mesmo que por uma razão
inteiramente diferente da do homem que o abandonou?
Em todo esse tempo, pude
aprender a lidar com a culpa que me apunhalava cada vez que as convicções sobre
minhas razões enfraqueciam, mas a verdade é que nunca me livrei completamente
dela.
E agora estou de novo frente
ao dilema de levar uma vida completamente humana ou manter um pé de cada lado
dessa escolha. Ainda, do mesmo jeito que antes, sentindo que não estou pronta
para mudar totalmente, mesmo que esteja louca pelas experiências que poderia
ter se me arriscasse.
Mas por mais que eu
esteja desejosa de uma vida ao lado de Eric, preciso estar do lado de Caio também,
e esperar que ele tenha condições de se proteger daquele que o tentou ferir,
tornando-se um anjo capaz de repelir o perigo. Ou então talvez eu tenha que dar
um jeito de fazer isso por ele.
No meio de tudo isso, ainda
tem Paty e todo o amor que senti ser possível entre ela e Caio; a total
ignorância de Marina e Fernando sobre esse detalhe perturbador relativo ao
atropelamento; e Alberto. Alberto que teve a coragem de tomar a decisão que
tanto me custa. Alberto para quem eu deveria ter ligado há pelo menos uma hora.
Decido deixar minhas
divagações de lado e fazer o que devo. Um passo de cada vez. O primeiro é
retornar a ligação.
— Pensei que estivesse
dormindo — ele diz quando atende.
— Eric estava aqui... —
Deixo a frase no ar, incerta sobre o quanto devo contar para ele das coisas que
conversamos hoje.
— O que foi? Isso é ruim?
— Não! De jeito nenhum.
Mas é que eu esqueci de te ligar por causa disso. Ficamos conversando e ele me
contou algumas coisas sobre a vida dele.
— Ok... Bom, era o que
você queria, não? Então eu fico contente. Está mais tranquila agora?
— Quanto ao Caio, não
sei. Mas de resto estou bem.
— Caio vai ficar bem, não
se preocupe. Eric já foi embora?
— Não, ele só saiu um
pouco para buscar uma pizza. Vamos jantar juntos.
— Certo. Aproveite,
então. E juízo.
— Tá. —
É, é um bom conselho, embora seja tão mais difícil agora. — Beto, eu
descobri uma coisa hoje sobre a qual não sei o que pensar.
— Outra? — Há um riso pasmado
em sua voz, mas ainda assim disposto e bem-humorado — Puxa, Clarinha! O dia
hoje está meio difícil de acompanhar, hein! O que foi desta vez?
— Quando eu estava com
Eric, ouvi o Chamado.
— Com Eric? Mas por quê?
— Tudo que eu sei por
enquanto é que ele precisa de mim, que não é coincidência nossas vidas terem se
juntado.
— Bem, eu nunca achei que
fosse. Parece que nada no amor é.
— Eu sei, mas é
diferente. — Tento encontrar uma forma de explicar que naquele momento em que
eu soube que tinha que ficar ao lado de Eric, era mais do que apenas minha
escolha. Senti que se eu não ficasse ele ia se perder em algum ponto que eu não
conseguiria mais encontrar. — Ele é tão sozinho, Beto! Tão perdido no próprio
mundo! E não é nada bom quando ele se perde lá.
— Então trate de trazê-lo
para o seu, minha querida.
— Espero conseguir.
— Não estou preocupado,
você é boa nisso. E posso dizer uma coisa? — ele pergunta com ar de quem vai me
provocar. — É por isso que os mais complicados ficam pra você!
— Está chamando meu
namorado de complicado, é? — Dou uma gargalhada, o que estraga totalmente minha
intenção de constrangê-lo.
— Não, só sua vida mesmo.
— Cala a boca, Beto. —
Ele ri, certo de que vai ficar impune, mas então decido aproveitar o momento em
que poderia planejar um contra-ataque para formular uma pergunta que não tive
coragem de fazer antes. — Eu hoje fiquei curiosa com uma coisa. Sobre você e
Júlia... Eu queria saber... Quando você... Ahn... Como soube que era a hora
certa?
Ele fica mudo.
Seguro o riso, mas mais
porque quero mesmo saber. Quanto ao embaraço dele, estou encarando como uma
vitória, embora não tenha a intenção de piorá-lo.
— Beto? — Ok, talvez só um pouquinho. — Se eu
não perguntar pra você, então pra...
— Ah, não! Não vou falar
sobre isso com você!
— Mas... Papiii! — Faço
uma vozinha bem irritante de adolescente manhosa que está fazendo birra para o
pai. Neste momento nenhum de nós aguenta mais ficar sério e fico com medo de
que minhas gargalhadas estejam ecoando no corredor.
Bem, não seria a coisa mais escandalosa que você fez lá hoje.
— Tudo bem — Beto diz
quando para de rir. — Só vou te dizer uma coisa, porque você é bem grandinha
para se virar com o resto. Não é a hora certa que importa mais neste nosso caso,
Clara. É a pessoa certa. E parece
para mim que você já encontrou a sua.
A pessoa certa. Sim, faz
todo o sentido.
— Obrigada, Papi — digo
com sinceridade, apesar do ar de brincadeira. — Você deixa muito a desejar como
orientador nesse quesito, mas o pouco que disse já é de grande valia.
— Sim, isso e... preservativos.
— A voz dele está quase sumindo no ar e não sei se fico com pena ou se acho
ainda mais engraçado. — E agora eu vou desligar, porque você me irritou.
— Desculpe. Eu te amo,
tá?
— Tá. Eu também — ele
resmunga, mas sei que está sorrindo. Não seria Beto se não sorrisse. — Tchau.
Depois que Alberto bate o
telefone na minha cara, fico pensando no que ele disse. Nas duas partes. Sobre
trazer Eric para o meu mundo e sobre ele ser a pessoa certa, então percebo que
são todas peças da mesma conclusão: a de que por mais que Eric ache que vou
correr porta afora na primeira oportunidade, não estou indo a lugar algum. Cada
esforço que ele faz, cada passo que dá em minha direção me faz perceber que já
estamos no meu mundo. E é aqui que vou garantir que ele fique.
Depois que tomo banho, coloco
o mesmo vestido discreto que usei na primeira vez que saímos e um pouco do
perfume de que ele já disse que gosta e me sento na sala para esperá-lo. Trato
de ocupar minha mente com coisas simples, como a comédia boba que está passando
na TV, tudo para não pensar em nada que possa perturbar meu foco de passar um
tempo agradável com ele. Nem no que quase aconteceu mais uma vez entre nós. Nem
no que ainda poderia acontecer se ele quisesse. Simplesmente porque estou cansada
de pensar.
Concentro minha atenção
no filme e registro vagamente que Eric está demorando um pouco mais do disse
que demoraria, mas apesar de tudo não consigo me importar com isso, porque relaxar
está me impedindo de seguir qualquer linha de raciocínio coerente. A história
na TV parece fazer sentido, mas não faz e quando tento entender por que,
percebo que não consigo lembrar o que os personagens estavam fazendo na cena
anterior.
Tento lutar contra o sono
e ainda acho que estou fazendo isso quando braços fortes me enlaçam e me
levantam. Estou vagamente consciente de que estamos nos movendo e meus sentidos
se inundam com o calor e o cheiro do abraço familiar.
Sei que não estou
sonhando, mas a sensação onírica me invade mesmo assim, como se eu estivesse
presa entre dois mundos. O meu e o dele. Quero acordar, mas há música em volta
de mim e não consigo concatenar nenhum pensamento lógico, nada que vá além da
consciência de que minha cabeça está aconchegada na curva do pescoço de Eric e
de que minha mão se agarra à sua camisa, bem acima de seu coração, quando de
repente não estou mais em seus braços, mas sim sobre os lençóis de minha cama.
Abro um pouco os olhos,
mas está escuro aqui e os sonhos que ocupam o quarto estão tentando me levar
para longe enquanto tento me prender na sensação de suas mãos em meus cabelos,
de sua voz em meus ouvidos.
— Eu amo você, Luz.
É só um sussurro, mas eu
sei que ouvi. Estou suficientemente acordada para saber que essas palavras não
são um sonho, e imediatamente sei que quero estar aqui para isso, que quero
guardar este momento como uma daquelas tentativas loucas das crianças de
guardarem o ar da própria respiração entre os dedos.
— Não sei se você pode
imaginar o quanto — ele completa —, nem o que isso significa para mim, mas eu
também amo você. Não vou deixar que se esqueça.
Seu polegar traça um
carinho suave entre meus olhos e eles finalmente se abrem de vez para ele. O
eco de sua voz em meus ouvidos é como um voo que ainda não acabou. E, agora,
tudo o que eu quero é continuar voando.
Mesmo no escuro, consigo
ver seus olhos brilhando, surpresos por eu estar acordada. Seguro sua mão e ele
sente nela o movimento de meus lábios antes mesmo de ouvir minhas palavras.
— Fique, Eric. Não vá.
Apenas fique comigo esta noite. Não deixe que eu me esqueça.
E quando ele se deita ao
meu lado, olhando para mim com os olhos de oceano em que não hesito afundar,
percebo que, nas sombras de meu quarto, a música que vem dele é toda feita de
luz.
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