domingo, 23 de junho de 2013

CD - Capítulo 12

POV Estrela


Peregrina havia pensado isso há um tempo indefinidamente longo atrás, uma lembrança embaçada de outra vida. Aquela estrada era horrivelmente monótona – os carros passando devagar ao meu lado, a paisagem redundante, era-me mais maçante do que eu esperava.


O volante girava quase sem meu consentimento; mas esse processo era quase desnecessário. Carro algum pedia passagem, por que não havia carro algum querendo passar, ou me acompanhando na estrada ao lado. A estrada estava quase vazia, não havia ninguém querendo sair da cidade exceto eu. Perguntei-me o que havia de tão interessante em Phoenix justo no dia em que eu ia embora.

O tanque dela estava ao meu lado, sob o banco do passageiro, brilhando reluzente com a luz ondulante com o reflexo do retrovisor. Peg não fazia ideia de que agora voltava para casa, de que eu faria isso por ela. Deslizei minha mão no topo do seu tanque ternamente, sorrindo; pensar na expressão de Ian vendo-a de volta seria a coisa mais gratificante para tudo o que eu fiz ao deixar minha curta vida para trás.

– Vamos chegar logo, logo – murmurei para ela. – Você vai ter sua vida, vai ter Ian e John outra vez.

Ao dizer seu nome, afaguei automaticamente o volume quase imperceptível na minha barriga, e meus olhos arderam por um instante: o filho que era uma pequena parte meu também, não saberia da minha existência, de que eu dei minha vida para salvar a dele. Tudo o que eu podia esperar é que um dia – se ela não guardasse ressentimentos por antes de tudo eu machucar seus humanos e roubar seu corpo -, ela dissesse para nosso John que um dia ele tivera uma mãe, uma mãe que o amara tanto que não podia suportar a ideia de continuar a viver com ele, sabendo que poderia ser mais feliz sem ela, com sua verdadeira progenitora.

Enfadada com as horas ininterruptas de tédio, eu suspirei meus olhos caindo sobre eles mesmos, o sono tentando me vencer. Mas eu não podia dormir, afinal, em tese, eu estava dirigindo, e eu não podia perder meu principal ponto de orientação – eu era totalmente capaz de passar milhas de Washington, acreditando que faltavam apenas quilômetros para chegarmos.

Então, foi com evidente alegria que eu recebi a visão do pequeno supermercado, minúsculo e abafado, ao lado de um posto de gasolina abandonado. Dei as ordens para o carro independente, e ele me levou até estarmos devidamente estacionados, sob os lajedos que rangiam do posto de gasolina, sem verdadeira proteção para que o interior do carro não ficasse como um forno.

Antes de sair, empurrei bem o tanque de Peregrina para mais debaixo do banco, para que ninguém pudesse ver seu brilho – eu não teria explicações plausíveis se me perguntassem o que eu estava fazendo com ele.

Entrei na lojinha quente e abarrotada. Não havia mais ninguém além do homem que trabalhava ali, empilhando caixas fechadas em cima das outras. As caixas significavam que ela tinha sido recentemente abastecida – o que significava muito mais comida, sem dar-me o remorso desnecessário de estar levando-a de alguém que não estivesse traindo sua espécie.

Eu estremeci a esse pensamento, e ignorei meu estômago rugindo. Havia decidido levar poucas coisas – minhas costas não eram tão fortes quanto as de Melanie, afinal.

– Boa–tarde – cumprimentei o senhor do balcão, sorrindo timidamente. As memórias de Peregrina fizeram-me reconhecê-lo como o mesmo de há tempos atrás.

– Boa-tarde, senhorita – ele me olhou com seu rosto enrugado, um sorriso gentil – Posso ajudá-la em algo?

– Oh, não, obrigado. Só vou pegar alguns lanches para uma trilha que pretendo fazer ainda hoje. – respondi-lhe

– Tudo bem, querida. Mas lembre-se que deve fazer essa trilha logo cedo, e voltar o quanto antes; eu não quero assustá-la, mas, nesses tempos, alguns de nós vem sumindo. – o senhor me informou, uma verdadeira preocupação no seu semblante.

– Prometo que tomarei cuidado.

Ele sorriu amavelmente e continuou com seu trabalho.

Respirei fundo, tentando me empenhar; eu seria direta e rápida, sem demoras desnecessárias. Não iria meu tempo durar muito até Logan acordar e ver que eu não me encontrava mais lá, e chamar toda a sua horda buscadora à minha procura – e eu não duvido que ele não deixaria ninguém no seu caminho dessa vez, nem mesmo meus humanos... Ian...

Água. Barras de cereais. Um mapa. Alguma coisa extra. Era tudo em que eu devia me concentrar no momento.

Caminhei até a prateleira com garrafões de água, analisando todos e tentando decidir qual eu poderia me esforçar mais para carregar. Havia alguns ali que eram mais pesados que eu mesma. Decidi-me afinal por um grande garrafa de quatro litros, e dois de 500 ml.

Eu não precisaria tão desesperadamente como Peregrina precisou de água – por que ela partira sem mesmo pensar que poderia conseguir continuar viva para bebê-la novamente, sem saber onde iria chegar no deserto infindável. Mas eu sabia para onde eu ia, e também sabia que iria chegar. Com sorte, até o fim do dia eu estarei novamente entre as paredes de pedra da minha casa.

Com um esforço inimaginável, e sem conseguir prender o arfar que saiu dos meus lábios, eu consegui ajeitar as garrafas junto ao meu corpo, que pendia para o lado em que elas me puxavam. Andei descompassadamente até chegar à outra prateleira, na seção alimentícia. Peguei algumas barras de cereais com a mão livre, enfiando-as no meu bolso. Depois tomei alguns salgadinhos, biscoitos, e refrigerantes. Voltei para o caixa, derrubando tudo em cima da esteira.

– Aqui, - sorri para o senhor – espero que eu consiga carregar tudo isso.

– Com muita força de vontade, querida. Isso é muito até para mim! – ele exclamou sorridente, registrando minhas compras na máquina.

– Força de vontade. Sim, isso é o que mais tenho.

– Você vai querer um mapa?

– Seria bom, por precaução. Essas montanhas são todas muito parecidas.

O homem – chamado Lionel, como vi em seu crachá quando me permiti prestar atenção -, me ajudou com a compras até o carro; depois de ter ficado “meia hora” admirando o carro de Logan e dizer-me que 69 foi o melhor ano do Mustang.

Dei o meu adeus a ele, e parti, dando as instruções ao carro, adentrando novamente na estrada rumo à minha antiga vida. E à minha futura morte.


As horas se arrastavam mais lentas que antes, como se alguém as puxasse para trás, impedindo-as de seguir em frente. A paisagem havia mudado agora; o que antes eram só vazio e imensidão, agora se alternavam plantas desconhecidas e de aparência perigosa, com grandes pontas secas e afiadas e pedras cinzas e quentes sobre alguns pedaços de vegetação morta.

Eu não estava entediada – agora eu estava ansiosa. À medida que o carro avançava pela estrada em direção ao deserto, meu estômago ficava cada vez mais embrulhado, meu coração mais acelerado pela vontade imensa de estar entre as paredes púrpuras até o fim do dia.

Imaginar qual seria a expressão de todos ao me ver é de fato fácil. Medo, surpresa, emoção, dor, dúvida. O corpo que era da Alma amada pela grande maioria estaria de volta para eles, conseguira atravessar o deserto novamente para voltar para sua família. Então, depois do primeiro momento, perceberiam que deveria estar morta.

E então sua reação logo depois. Eles me jogariam no odioso buraco redondo e apertado, que por semanas havia sido a prisão de Peregrina? Dariam-me para comer apenas sopa rala de legumes e água amarga?

Provavelmente, movidos pela raiva com que seriam cegados ao me ver dentro daquele corpo, eles fariam exatamente isso com a Alma no lugar de Peg – apenas uma coisa me salvava, se eles me dessem tempo para contá-la: ela havia deixado comigo seu filho, um bebê dela e de Ian, um bebê humano. E por mais que os humanos fossem cruéis e vingativos, eles jamais fariam isso com uma mulher grávida.

E de certa forma, era algo que meu Ian jamais permitiria.

Ian.

Apesar de ele ser a principal razão para que eu me metesse nessa jornada, pensar nele era uma dor excruciante. A vontade... A necessidade que eu tinha de vê-lo era por partes submersa pelo reconhecimento dos nós que eu daria em seu coração quando estivesse à frente de seus olhos. Os olhos vívidos e indulgentes, capazes de queimar e de arder, das minhas lembranças, que neste momento me lembram de outro par de olhos intensos -, agora tomados pela dor e pelo vazio da sua vida sem sua alma; a esperança desvairada se acendendo e depois se apagando ao ver o corpo da sua amada, e então perceber que não é mais ela que esta lá dentro. Ah, Ian...

Então eu percebo.

De tão perdida que eu estava nos meus pensamentos, eu não havia visto e nem sentido o formigamento das minhas mãos até o cotovelo, como se fossem água fervendo. As peles argênteas dos meus braços, que estavam apoiados sob o vidro dianteiro amplo do carro, estavam vermelhos e repletos de bolhas se formando. Como se estivessem sendo fritados.

E o meu estômago, antes revirado pela ansiedade, agora esta revolto, se contorcendo e se repuxando em todas as direções. Um bolo se formou na em minha garganta, e meus olhos arderam com as lágrimas que se formaram.

Com a velocidade do Mustang, e a velocidade que ele tritura pedras e plantas espinhentas, nada ficando em seu caminho, acredito que estamos na metade do caminho em direção ao pico, e que ainda falta uma hora ou duas para chegarmos às cavernas. Mas sei que não vou aguentar nem mais dois minutos, então, num rompante, abro a porta do carro já desligado e me lanço para fora.

Cambaleante, eu rodo alguns metros, desviando de creosotos e chollas, até que tropeço numa grande pedra que me escapara de vista; minha cabeça latejante não detectava nada além da sensação de estar sendo torrada viva sob esse sol entorpecedor.

Minhas mãos vão direto para minha barriga, para meu pequeno John, desejando com todas as minhas forças que ele estivesse bem – até que os meus braços perdem a força e eu caio com o rosto na areia, então percebo que nenhum de nós ficará bem.

Tudo que eu posso fazer é balbuciar mentalmente meus pedidos de desculpas; minhas desculpas a Ian, por não ter conseguido voltar e entregar-lhe seu filho e seu amor, a Peregrina, por não ter conseguido levá-la de volta para sua casa, a John, lamentando com minha vida por ter que levá-lo comigo por culpa da minha fraqueza. E a Logan, por ter destruído sua esperança e seus sonhos, e, de certa forma, os meus também.

Então eu perco a consciência.

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