sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

CD2 - Capítulo 3

Capítulo 3 – Aculturados

Mama told me when I was young
Come sit beside me, my only son
And listen closely to what I say
And if you do this it will help you some sunny day

Take your time, don't live too fast
Troubles will come and they will pass
Go find a woman and you'll find love
And don't forget, son, there is Someone up above

And be a simple kind of man
Be something you love and understand
(Simple Man – Lynyrd Skynyrd)

Jeb

É estranho o tipo de coisas de que a gente se lembra. E mais ainda as que a gente esquece.
Tudo bem, alguém pode argumentar que estou ficando velho. Que diabos, não se pode impedir o tempo de fazer seus estragos! Mas eu não sou tão velho assim e meus parafusos não pretendem se aposentar tão cedo, se querem saber. Está certo que os filhos da mãe sempre seguiram sua própria lógica de funcionamento, mas acho que entendo o suficiente da minha própria cabeça para saber que está tudo em ordem. Ou algo que se pode chamar assim. De qualquer maneira, não é disso que estou falando.
Não falo de coisas como não saber onde foram parar os óculos que estavam o tempo todo na sua cara, mas das peças que nossa memória, essa sujeitinha caprichosa, nos prega, não importa em que idade. Como quando penso em meu irmão Trevor, por exemplo.
Ele era só um molecote mal saído dos cueiros, quando eu me mudei para a cidade para trabalhar numa das fábricas de produtos agrícolas que se instalavam na região. Naquela época, os garotos, ainda mais os de fazenda como eu, tinham que se tornar homens muito antes dos rapazolas de hoje, então eu estava fazendo minha parte, mas toda vez que podia, ia visitar minha família e me permitir ser um pouco filho de novo.
Ser o irmão mais velho de Magnólia não era muito divertido, mas Trevor conseguia me fazer sentir especial de um jeito que só as crianças conseguem e, naquela época, eu precisava disso. Nunca levei muito a sério essa história toda de “adolescência”, naquele tempo a gente virava homem e pronto, mas havia uma porção de coisas para as quais eu não estava preparado ainda. Como me sentir extremamente sozinho e um completo imbecil tentando fingir que era dono da minha vida, por exemplo. Não que eu jamais fosse admitir para alguém, ou para mim mesmo, mas olhando para trás agora, eu sei.
E então esse moleque que se grudava em minhas pernas para que eu não fosse embora, que gritava de empolgação quando íamos jogar bola e que achava que eu era o cara mais bacana do mundo, me fazia sentir assim mesmo: como o cara mais bacana do mundo. E eu me lembro exatamente do som da risada dele e do cheiro da bola de couro e trapos que nós usávamos, misturado com a poeira do quintal.
Lembro de coisas bobas como essa e das coisas grandes, como o orgulho que senti quando ele entrou para a universidade, o primeiro da família, e de como foi bom vê-lo se casar com Linda e se ajeitar na vida, embora nessa época ele já tivesse decidido que eu e Maggie não éramos bons o suficiente para ele, que Deus abençoe seu coração tolo.
Eu me lembro de todo tipo de coisas, mas há dias em que o rosto dele me escapa e eu preciso olhar Mel e Jamie até o ponto de assustá-los, apenas para recompor um pouco das feições do pai deles em minha memória. Em dias assim, lembranças são coisas estranhas e dolorosas, ainda que no mundo em que vivemos agora, elas sejam tudo o que temos.
Mas isso não é uma coisa ruim. Digo, as lembranças e a dor que elas eventualmente trazem. Ou o mundo em que vivemos agora. As lembranças são armas que nos mantêm vivos. Íntegros. E o novo mundo não é tão ruim. Não quando você acha seu lugar nele. E, se querem saber, acho que me saí muito bem nisso.
Como quando meu mundo mudou no passado e Trevor me manteve em contato com a parte de mim mesmo que eu não podia perder, dessa vez foi Melanie, a filha dele, quem fez isso por mim. Ou, mais precisamente, os olhos de Peg que se abriram para mim dentro dos olhos de minha sobrinha.
Eu pensei que estivéssemos em guerra, mas a guerra havia acabado. Estava perdida para a maioria de nós desde o começo, no entanto havia outra se iniciando para quem, como eu, conseguiu sobreviver. Eu comecei a entender isso no momento em que Peg me chamou de “Tio Jeb” no deserto, e me fez suspeitar que Mel tinha encontrado um meio de persistir. Havia um outro estágio do que eu chamava de “guerra” começando ali. Havia o depois.
Nós não conseguimos impedi-los de tomar o planeta e eles não conseguiram se livrar de nós. Não de todos, pelo menos. E não das nossas lembranças. Acho que isso foi a pior parte para eles, porque fez com que eles se tornassem um pouco nós. Confesso que acho isso ironicamente divertido.
Por certo que poderíamos sair por aí usando o conhecimento que Peg nos deu e resgatarmos quantos humanos pudéssemos. Mas e então? O que faríamos com eles? Onde os abrigaríamos nesse mundo que não mais nos pertence? O que faríamos quando suas consciências não despertassem, como aconteceu com o Jodi ou com a nova hospedeira de Peg?
Há algo na vida que se chama “saber quando parar” e, para o bem ou para o mal, esse é um conhecimento que adquiri. Acabou. Não podemos mais vencer. Não se não entendermos que vencer agora tem um outro significado. E isso é algo que homens como eu e Nate tivemos que aprender.
Eu estava no esconderijo dele enquanto pensava nessas coisas, tendo vindo para garantir que Jamie e Logan não se engalfinhassem nos quilômetros até aqui, porque agora, além de um sobrinho adolescente, eu tinha também um ex-Buscador mal-humorado para tomar conta, já que ele não entendia que era apenas uma criança inconsequente nessa coisa nova de ser humano. Mas, depois da viagem um pouco longa na estrada esburacada e tortuosa, eu estava me arrependendo disso, agora que o cansaço tomava conta de minhas pernas e o resto de meu corpo doía um pouco. Talvez eu esteja um pouco velho para brincar de babá, afinal.
A casa de Nate ficava numa antiga fábrica de doces caseiros, desativada antes mesmo da invasão, porque a estrada secundária onde ela estava, na saída de uma pequena cidade a caminho de Tucson, acabou se tornado um trecho inútil depois da construção de uma rodovia. A fábrica era também onde ficava a loja, então as vendas caíram drasticamente e os herdeiros abandonaram tudo depois da morte do dono. Isso foi há muito tempo e Nate achava que ninguém mais se lembrava do lugar, o que parecia estar certo porque, apesar da vigilância constante que os membros do grupo mantêm, apenas uma vez, em todos esses anos, Buscadores passaram por aqui, ao que Cal se encarregou de despistá-los.
Ele disse que o terreno tinha sido adquirido por seu hospedeiro pouco antes da invasão, tão pouco antes, na verdade, que os humanos nem tinham tido tempo de arranjar os papéis com que concretizavam seus negócios, mas que ele se lembrava disso, então veio visitar o local. Quando chegou, percebendo que o local estava em estado lastimável de abandono, ele tinha se interessado em reformá-lo e transformar tudo em sua nova casa, com uma grande estufa onde cultivaria plantas ornamentais e o que mais pudesse fazer florescer.
Os Buscadores aceitaram tudo, já que não tinham razão para duvidar de outra Alma, congratulando Cal por seus esforços em favor da natureza. Eles garantiram que não havia interesse geral em restaurar aquela área, portanto Cal podia permanecer ali com suas plantas, então armazenaram alguns dados em seus registros e nunca mais voltaram.
Graças às habilidades de carpintaria de Rob, o lugar era agora uma casa simples, mas confortável, inclusive com a estufa de plantas que Cal mencionou aos Buscadores. Resulta que, depois de sua estadia no Mundo do Fogo, o rapaz parecia querer se desculpar com as flores na medida do possível.
— Ei, o que está pensando? — perguntou Nate se aproximando de mim com uma garrafa de água nas mãos.
Nunca era um pergunta fácil de responder, eu sempre pensava em muitas coisas ao mesmo tempo, mas ainda havia um pensamento mais fresco do que todos em minha cabeça, o mesmo que ocupava quase todas as minhas noites momentos antes de dormir e que eu estava tendo quando me distraí com as plantas de Cal que eu podia ver de onde estava sentado.
— Acho que na distância que percorremos — respondi, aceitando a gentileza bem-vinda da água. Fazia um calor dos infernos por ali também, mesmo para um homem acostumado ao deserto, como eu. — Obrigado — levantei a garrafa e Nate assentiu com a cabeça, sentando ao meu lado.
— Não é da distância de Picacho Peek até aqui que você está falando, certo?
— Não mesmo — respondi, rindo. — Estou é tentando me lembrar quando foi mesmo que o inimigo deixou de ser isso para se tornar outra coisa.
— Nem todos são como eles, Jeb — disse Nate, apontando com a cabeça para Cal e Logan que conversavam em outro canto. — Você sabe bem disso.
— Sim, eu sei. Mas eu sempre achei que sabia de muitas coisas, Nate. Muitas vezes a gente se engana. Logan é uma prova disso.
— Eu concordo. Mas não acho que estejamos mais na posição de arriscarmos estar errados.
Não, não estávamos. Nate tinha razão. No entanto, às vezes eu sentia falta de ser o tipo de cara que pode duvidar de suas certezas a qualquer hora.
— Você ainda consegue pensar neles, quero dizer nas outras Almas, como inimigos? — perguntei. — Porque eu não. E isso não é bom. Não posso me dar ao luxo de me tornar um velho bundão.
Nate gargalhou, aquela risada rouca e profunda que impressionava tanto. Ninguém ria mais assim hoje em dia, mas nele era natural.
— Bom, é mais carne pra chutar, isso você não pode negar! — nós rimos juntos mais um pouco e, por um segundo, aquilo parecia de novo com estar num bar falando bobagem com amigos. E esse é o tipo de coisa de que alguém pode sentir falta. — Mas eu entendo o que quer dizer — ele continuou. — É mais difícil pensar nas Almas como “o lado oposto” quando se conhece uma delas. Ou várias, como você e seu ninho de aculturados.
— Ninho de aculturados... É uma escolha interessante de palavras. Acho que todos nós, os humanos inclusive, podemos nos considerar aculturados. Nós entendemos, depois de tudo, que não existem mais lados nessa história. As outras Almas têm tanto medo dos humanos quanto os sobreviventes que pode haver por aí têm deles. Mas nós sabemos que é possível conviver.
— Não sei, Jeb. Não podemos falar por todos os humanos que restaram. Ou mesmo por todas as Almas.
— Especialmente por todos os humanos, eu sei. Talvez tenha sobrado gente muito ruim por aí. E eu não sei o quanto todas as outras Almas são de fato parecidas com as que conhecemos, mas... O jeito que vivemos, como essas Almas... aculturadas, como você e Cal dizem, vieram parar entre nós... isso tudo me faz pensar.
— Você acha que existem outros por aí? Outros como Cal e Peg?
— Eu acho que é possível, Nate. Acho que talvez as coisas não estejam tão perdidas quanto possa parecer e, um dia... E não estou dizendo que esse dia está próximo, eu e você não o veremos chegar, com certeza, mas Lindsay e John têm a chance de ter o nosso mundo de volta, de encontrar um ponto no meio do caminho onde as duas espécies de que são frutos possam conviver em paz.
— Jeb tem um sonho, como Martin Luther King — Nate zombou, mas não de verdade. Se havia alguém que podia me entender, esse alguém era ele. — Só espero que você tenha razão.
— Não sei se sou um sonhador, mas sou um homem simples, e a verdade, no final das contas, não é muito complicada.
— Homens simples conhecem a verdade, não é? E agora vamos mudar de assunto antes que comecemos a cantar músicas dos anos 70 — Nate gargalhou de novo, mas logo ficou sério quando olhou para Cal. — Quando eu penso na maioria dos seres humanos que cruzaram meu caminho e os comparo com meu amigo ali... Bom, talvez soe estranho e tremendamente egoísta dizer isso, mas acho que se as outras Almas forem parecidas com ele, talvez eles mereçam esse mundo mais do que nós.
— Certamente eles tratam melhor dele, isso eu te digo. Mas se você quer mesmo mudar de assunto, por que não me conta de novo como você e Cal se conheceram? Você já me contou anos atrás, mas eu me esqueci dos detalhes. A menina Kate ainda tem muitas saudades pra matar e eu preciso matar meu tempo enquanto isso. O que me diz?
— Você quer ouvir de novo? A mesma história? Jeb, não faz anos, faz só alguns meses desde que você me pediu para repeti-la, lembra?
— Bem, não é como se tivéssemos boas histórias sobrando por aí.
Nate balançou a cabeça, incrédulo. Para a maioria das pessoas, é difícil entender que uma história tem detalhes diferentes cada vez que é narrada. E, mesmo que fosse exatamente a mesma, quem ouve está diferente cada vez que ela é contada, e fica um pouco mais depois que ela termina.
Que Deus não permita que as pessoas descubram que essa é minha parte menos louca, mas eu tenho uma queda irremediável por histórias bem contadas. E como o danado do Nate sabia contar uma história!
Então, depois de um ou outro protesto inútil, lá estava ele, todo empolgado, contando-me de novo como era o Primeiro Sargento dos Fuzileiros Navais, Nathan Rowlings, “preso” em um navio cheio de alienígenas que ele nem sabia que existiam, mas então, “quando você vê um grupo de soldados bebendo limonada em sua noite de folga na cidade, percebe que tem algo de muito, muito estranho no ar”.
Depois daquela noite, Nate começou a observar com mais atenção e as coisas só iam piorando. Todos os soldados, e principalmente os oficiais de alta patente do navio, iam, um a um, transformando seu comportamento, tornando-se apáticos em relação a coisas que antes os animavam e preocupados com outras que nunca lhes despertaram o interesse.
De certa forma, em essência, eles eram os mesmos, continuavam fazendo as mesmas coisas, falando da mesma maneira, mas estavam diferentes. E havia aquele maldito brilho estranho no olhar que ele não podia explicar, mas que de repente estava lá, na cara de quase todos seus amigos e conhecidos.
Nate pensou que podia ser algum tipo novo de droga, talvez uma experiência maluca autorizada pelo Governo, e ficou assustado com a possibilidade, mas de que outra forma ele poderia explicar a coisa toda? Quer dizer, teorias malucas funcionam bem em mentes malucas como a minha, mas na de respeitáveis e centrados oficiais do exército, elas parecem um ultraje impossível de considerar.
No entanto, Nate as estava considerando, porque a única coisa mais forte que seu desejo por uma explicação plausível e da negação de qualquer coisa que não fosse lógica era seu instinto de sobrevivência. Fosse pelo que fosse, ele tinha sido deixado por último, talvez tivessem se esquecido dele ou simplesmente subestimado sua capacidade de desconfiar. O fato era que ele parecia ser o único ileso, e estava determinado a se manter assim.
É por isso que quando a Sargento Camerom veio procurá-lo com ordens de escoltá-lo até a enfermaria para uma verificação de rotina da tripulação, ele estava preparado para a hora que sabia que havia chegado: o momento da verdade.
Quando ela se virou para que ele a acompanhasse, Nate viu a marca na parte de trás do pescoço, era uma cicatriz simples, mas num local estranho. Na noite da folga, eles dois tinham estado juntos... digamos, biblicamente, e ainda que a nuca da moça não tivesse sido seu foco, ele tinha certeza de que aquela cicatriz com cara de antiga não estava lá dias antes.
“Ei, Mary”, ele a chamou pelo primeiro nome, “o que houve com seu pescoço? Eu não tinha reparado nessa cicatriz.”
A mão de Mary voou até o local e ela se virou para ele, desconcertada. Os olhos tinham o brilho estranho que ele já estava esperando que tivessem, mas havia mais uma coisa, como se, de repente, ela tivesse se lembrado de um detalhe qualquer — provavelmente de quem ele era para a hospedeira — e esse dado a fez se dominar.
“É só uma cicatriz antiga, Nate, um machucado de infância. Você não reparou, porque... bom, estávamos ocupados com outras coisas.”
Tê-lo chamado pelo apelido — e não de Senhor, Primeiro Sargento Rowlings ou mesmo Nathan — foi o que a denunciou. Mary podia até pensar nele assim, mas nunca o chamava dessa maneira informal, especialmente quando estavam de serviço. Quando entre amigos, durante as folgas, ela era a única que nunca o chamava de Nate, apenas de Nathan.
A patente dele estava acima da dela e, mesmo sem outras pessoas por perto, Mary o trataria de maneira formal. A vida de uma mulher na Marinha não era fácil e ela sempre tinha tido o cuidado de afetar uma indiferença respeitosa por todos, mesmo, e talvez principalmente, por seu “amigo colorido”. Ela nunca vacilaria mencionando a aventura que tiveram fora do navio, e a tentativa da Alma de estabelecer uma cumplicidade falsa com Nate tinha saído pela culatra. Ela havia superestimado a intimidade entre os dois.
“Para onde estamos indo realmente?”, Nate demandou saber, mas a Alma estava preparada para a resposta que veio rápida.
“Estamos com uma epidemia no navio. Não é nada de mais, apenas uma virose, mas não se pode descuidar quando se trata de um vírus dentro de uma embarcação, por isso a checagem.”
Nate fingiu concordar e os dois saíram pelo corredor das cabines, mas ele sabia que precisava se livrar dela. O que quer que estivesse acontecendo com Mary, Nate não queria machucá-la, então ele simplesmente deu-lhe um esbarrão que a desequilibrou um pouco e disparou a correr, dobrando um corredor secundário. Infelizmente a Alma não desistiu tão fácil e, com suas pernas mais ágeis e mais jovens, o alcançou logo, estendendo um spray diante do rosto dele.
A tal droga! Só podia ser. Não lutar contra Mary deixou de ser uma opção nessa hora, porque a única outra alternativa disponível seria permitir que a ela o dopasse e fizesse sabe-se lá o que sem seu consentimento, então ele se preparou para o confronto, ainda que pretendesse se esforçar para machucá-la o mínimo possível.
Mary tinha treinamento militar, é claro, mas a Alma era novata e ainda não sabia manejar bem as habilidades daquele corpo. Somados a isso ainda havia sua aversão natural pela violência e o fato de Nate ser mais forte. Derrubar o spray da mão dela foi fácil e, num instante, ele conseguiu dominá-la numa gravata e deixá-la desacordada. Ele pousou o corpo da amiga no chão, tomando o cuidado de verificar se não tinha exagerado na força, e tentou formular um plano de fuga.
Não levou dois segundos para que ele percebesse que estava numa enrascada tremenda, porque... bom, você não pode sair correndo de um navio em alto mar, pode? Não, não pode. E a próxima vez que a embarcação estaria em terra firme seria só dali a dois dias. Então essa é a hora em que eu realmente rôo as unhas, mesmo sabendo que Nate se lembrou de dois soldados que dividiam a cabine, e que estavam em uma breve licença médica por terem se envolvido em um acidente de trânsito durante a folga anterior. A cabine deles, que era ali mesmo naquele corredor, devia estar desocupada e talvez ele pudesse fazer o impossível e se esconder ali pelo tempo que restava.
Talvez, com muita sorte, ninguém se lembrasse da cabine vazia e... Ela não estava vazia!
“Meeeeerda!”
Aquele soldado ruivo, aquele que Nate não conhecia muito bem... — Como era mesmo o nome dele? Ah, certo! Steve O’Connell — estava ali bem na frente dele, olhando-o como se as órbitas de seus olhos azul-escuro fossem mandar seus globos oculares procurarem apartamento em outro condomínio, porque aquela visão ali era uma quebra de contrato.
O maldito quarto não tinha dois, mas três leitos, e Nate não fazia ideia de que Steve-tímido-e-reservado também dormia ali. Entretanto, lá estava ele, ainda sentado na cama, pego no meio do ato de calçar as botas pela manhã, por um Nate desesperado e com um instinto ligeiramente assassino nascendo em seus olhos. Não que ele quisesse realmente matar um soldado inocente “contaminado por sei lá o que”, mas, de qualquer forma, ele não tinha escolha. Com Mary as coisas eram diferentes, mas com aquele homem praticamente desconhecido à sua frente, ele lutaria sem escrúpulos se preciso.
Isso era o que ele estava pensando e o Soldado O’Connell — ou a Alma Flores Vivas Calcinadas, como Nate aprendeu mais tarde naquele dia — sabia disso. Entretanto, ele não se preparou para lutar ou sequer para se defender. Ele apenas se levantou devagar, sustentando o olhar do humano o tempo todo, e colocou as mãos para cima.
“Eles vão te encontrar aqui se fizer barulho”, ele disse em uma voz de tenor que Nate não se lembrava de ter ouvido antes, ao menos não com aquela inflexão que deixava saber que aquilo não se tratava de uma ameaça, mas apenas de um aviso dado num tom sereno e calmante de quase reprimenda.
Os dois ficaram ali, há poucos metros de distância, apenas decidindo o que fazer. Nate pensou em partir para cima dele, mas a atitude do outro o desarmara e, nos segundos que levou para conseguir se colocar no mesmo estado de alerta em que estava antes, percebeu que Steve/Cal não pensava em atacá-lo, estava apenas indeciso e assustado, tanto quanto ele.
Não se sabe o que teria resultado se Nate tivesse seguido seu primeiro instinto de atacar ou se Cal tivesse seguido o seu, de gritar por ajuda. Até hoje nenhum dos dois sabe por que não o fizeram. O certo é que não houve gritos de socorro, agressões ou mesmo ameaças. Por alguma razão insondável, a única coisa que Nate conseguiu pronunciar, num tom inédito de apelo, foi um “por favor”. Um pedido quase impronunciado que selou o acordo mudo entre os dois.
Nos instantes que se seguiram, tudo aconteceu muito rápido. Nate se lembra de ver Cal balançando a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse se censurando pela decisão insólita e imprudente que pensava em tomar, mas então, uma movimentação do lado de fora apressou tudo e terminou com o tempo para cogitações. Talvez Mary tivesse acordado, ou quem sabe os outros, ao saírem de seus quartos, tivessem-na encontrado. De qualquer forma, ele estava a segundos de ser descoberto e sua capacidade de pensar rápido tinha entrado em colapso quando ele mais precisava. Nate estava tão assustado que a única coisa que conseguiu fazer foi ficar paralisado no lugar.
Por sorte, Cal não estava paralisado de susto também e, finalmente decidido, viu-se obrigado a agir rápido e de chofre. Ele apenas agarrou o objeto mais pesado que encontrou, um haltere que seus colegas de quarto e ele usavam para se exercitar, e saiu carregando-o porta afora, tomando o cuidado de fechá-la atrás de si. Nate colou o ouvido na porta fechada e escutou o baque de algo caindo na água. Ele ainda conseguiu ouvir quando outros se aproximaram, atraídos pelo barulho, e Cal disse a eles que o humano, confuso e com medo, havia, lamentavelmente, se atirado ao mar e tirado a própria vida num rompante de desespero.
Ele podia ouvi-los cogitar se seria possível voltar e tentar encontrá-lo, porque era mesmo uma pena perder “um deles” assim, entretanto o navio estava a pleno vapor e, a cada minuto, se tornava mais impossível encontrar “o corpo hospedeiro” a tempo de salvá-lo.
Em sua cabeça, só o que havia eram perguntas suficientes para secar o mar inteiro se as respostas fossem gotas d’água, e pensar nelas foi o suficiente para alimentar sua mente até que o tumulto se dispersasse e Cal pudesse voltar com pelo menos algumas explicações.
“Não tenha medo de mim,” ele disse quando entrou, logo depois de anunciar discretamente que ia fazê-lo. “Preciso ter medo de você?”
“Por que você fez isso? Por que me ajudou?”
“É complicado... De um jeito pouco familiar para mim. Sendo assim, não tenho certeza se consigo responder. Há muitas coisas que você não sabe. Mas... acho que a vida é a resposta. Eu não conseguia mais vê-la desaparecer. Quando você me pediu ajuda, bem, eu não consegui negar. Semper Fi[1] significava alguma coisa para ele. E ele te respeitava, se espelhava em você. Ia querer ter te salvado.”
Ele? Que papo é esse de “ele”?, Nate pensou. Mais tarde viria a saber que “ele” era o tímido Soldado O’Connell, que nutria mesmo profundo respeito e admiração por seus superiores. Respeito esse que ajudou a salvar sua vida e pelo qual ele era grato, mas, naquele momento, só conseguiu pensar na coisa de “não conseguir ver a vida desaparecer”.
“Então eu ia morrer?” Nate tomou coragem de perguntar.
“De certa forma, sim.”
“E você me salvou?”
“De certa forma... sim. Acho que sim. Por enquanto.”
“Então, não. Você não precisa ter medo de mim” Nate decretou. “Talvez você possa me dizer algumas das coisas que eu não sei, O’Connell.”
“Eu não sou mais Steve O’Connell. Não completamente.”
Ok, como se as coisas não estivessem estranhas o suficiente, ele pensou.
“Então me diga, não-completamente-Steve, o que está acontecendo e quem é você, afinal?”
Bem, aquela foi uma conversa estranha, difícil e assustadora. Cal contou tudo a ele sobre a invasão, outros planetas, sua vida anterior no Mundo do Fogo e como ele entendia agora, ao estar diante dos sentimentos de Steve, que o nome do que sentia pelas formas de vida que consumiu lá, aquelas apelidadas de Flores, era culpa. Eles falaram sobre como essa culpa fez Cal salvar Nate e sobre como a fidelidade intrínseca de Steve, bem como outras coisas a respeito dele, eram agora também parte de quem ocupava aquele corpo.
Falar sobre esse assunto foi especialmente difícil, porque envolvia a sobrevivência de ambas as espécies. Acima de tudo, envolvia a sobrevivência de Steve e “Semper Fi” também significava algo para Nate, mesmo que ele estivesse se apegando a Cal e mal conhecesse o soldado a quem o corpo pertencia. Ou não pertencia mais, ao que tudo indicava.
“Mas ele não tem nenhuma chance? Steve não vai voltar, é isso? Nós não temos nenhuma chance se vocês nos pegarem?”
“Bem, eu soube que alguns lutam, se entenderem o que está acontecendo eles resistem. Você provavelmente lutaria agora que sabe. Talvez perdesse, talvez tivesse a chance de vencer. Mas, acredite, isso seria pior.”
“Como é possível que vencer seja pior? Isso é um contrassenso! Você está falando da única chance que temos! Eu preciso... Deve haver um jeito de...”
“Nate, nós descartamos os hospedeiros que consideramos perigosos e resitentes.”
“Descartar? Com descartar você quer dizer...”
“Sim,” Cal confirmou com um suspiro pesado.
A palavra matar ficou parada na garganta de Nate e ele sentiu um ódio profundo por tudo aquilo. Pelos alienígenas hipócritas, pelos humanos pretensiosos e descuidados, incapazes de prever aquela merda toda, e por Cal, o alienígena ladrão de corpos que, no entanto, tinha lhe salvado a vida. Só para contar-lhe depois que não havia bem uma vida para viver, que estava tudo perdido para todos que conheceu.
Bem, todo mundo sabe o que acontece com os portadores de más notícias nas histórias, não é? E, embora Nate não tivesse matado o mensageiro, naquela noite ele considerou fazê-lo. Não só Cal, mas todos no navio, então depois os outros, até que não sobrasse ninguém.
Claro que ele sabia que aquele era um pensamento estúpido que jamais viria a cabo. Afinal, a vida não era um filme de ação. Mas foi bom ter uma fantasia, por mais violenta e irrealizável que fosse, para poder canalizar o sofrimento de descobrir que o mundo tinha acabado e ele tinha ficado para se mover entre os destroços.
Naquela noite, eles não conversaram mais. Havia coisas demais acontecendo na cabeça de ambos. Em um só dia, Cal tinha salvado a vida de Nate, traído sua espécie e entendido o que realmente significava estar no corpo de Steve, o fardo da necessidade de um hospedeiro. E Nate tinha... bom, todos sabemos que ele tinha muita coisa em seu prato.
Durante os dois dias que antecederam o desembarque, dois dias que Nate permaneceu escondido na cabine que tinha sido de Steve, Cal vinha vê-lo, trazendo o que pôde conseguir para ele se alimentar em nesse tempo, tentaram pensar em como seria a fuga. Ele convenceu Cal a roubar todas as armas que pôde, não sem ter que enfrentar a coisa da aversão à violência.
“Se você vai me ajudar, tem que me dar todas as chances que eu puder ter. eu não pretendo matar ninguém, mas também não vou deixar eles me pegarem. Você sabe o que acontecerá se eles o fizerem, você mesmo me disse. E pode apostar que eu vou resistir e eles vão ter que me descartar no final. Vocês aliens são mesmo muito engraçados com seus eufemismos. Descartar... Não violentos o escambau!” Nate argumentou.
Bem, o resto da história é previsível. Cal só ia ajudar Nate a desembarcar, disfarçando os olhos com óculos escuros, boné e a coisa toda depois que todos que ouviram a história do suicídio tivessem partido. Quando conseguiram, perceberam que só tinham se planejado até aí, e Nate não tinha para onde fugir. Steve tinha irmãos, então ir para a casa dele não era um opção para esconder um humano.
Foi então que Nate se lembrou da fábrica onde seu pai tinha trabalhado e onde ele poderia se esconder enquanto procurasse por outros sobreviventes, como pretendia. O problema é que ele teria que cruzar muitos quilômetros de carro e essa viagem seria certamente mais segura com um aliado, então Cal o acompanhou mais um pouco. Depois mais um pouco, até se assegurarem que o local era seguro. E aí mais uns dias, sem nenhum motivo aparente. Até que ambos entenderam que seu lugar era ali.
Os outros humanos foram sendo trazidos com o tempo, resgatados de esconderijos precários ou vivendo como nômades fugitivos. Nate não tinha se casado e todos os seus amigos eram da Marinha, então aquela se tornou a sua família mais rapidamente do que podiam imaginar. Todos eles, sem exceção, tiveram medo de Cal no início, mas depois entenderam que ele também era parte daquilo: dos sobreviventes da fábrica.
— Eu só senti muito por Mary — Nate brincou. — Queria ter podido salvá-la e passar um pouco mais de tempo com ela.
— Kim ficaria emocionada em ouvi-lo falar assim — retruquei, rindo. Kim é “a primeira dama da fábrica”, como brinca ele.
— Sim, emocionada. Até me daria um tiro para comemorar.
Nós rimos um pouco e depois nos distraímos com um lanche de biscoitos meio doces demais que Nate trouxe. O tempo todo ele ficou pensando em alguma coisa que não compartilhou comigo, mas achei que tinha a ver com Kim.
— Você já se apaixonou, Jeb? Nessa sua longa vida de lobo solitário, alguma vez você teve companhia?
— Não deu certo — foi o que me limitei a dizer, apenas porque Nate é meu amigo e eu não queria ser grosseiro, mas eu não falo sobre esse assunto. Nunca mais falei sobre ela em toda minha vida. Depois de tanto tempo, é como se ela não tivesse existido e estou em paz com isso.
— Sinto muito.
— Não sinta. Às vezes a gente simplesmente faz as coisas do jeito errado. Minha mãe sempre me disse que antes é preciso achar a mulher, depois o amor. Eu tentei fazer o contrário e paguei por isso. E foi assim que a história terminou.
— Eu sei o que quer dizer. No momento em que Kim apontou uma arma velha e enferrujada no meio da minha cara quando eu a encontrei naquele casebre abandonado, eu soube que ela era a mulher certa. Quando se acha a mulher certa, o amor acha você. Caso contrário, você está apaixonado por uma ilusão.
— Sim. E eu não tenho mais idade para alimentar ilusões. Elas tiraram o melhor de mim há muitos anos, depois nunca mais me pegaram. Eu só cometo o mesmo erro uma vez.
— Não sei, Jeb. Acho que você ainda pode se divertir um pouco por aí. Quer dizer, não é como se tivéssemos muitas opções, mas Gail...
— Vou pensar no assunto.
Eu não ia. Mas a conversa estava começando a me dar dor de cabeça e encontrei o meio mais eficiente de cortá-la. Nate entendeu o que eu fiz, no entanto, percebi isso quando ele assentiu e desviou o olhar envergonhado, sabendo que invadiu território inóspito. Não tinha nada a ver com ele, mas eu não me sentia bem, estava cansado demais e só queria mudar se assunto. Felizmente, ele escolheu um caminho confortável para sairmos daquela encruzilhada:
— Então agora me conte você algumas de suas histórias, colecionador de aculturados.
Abri a boca para protestar, mas parei no meio do caminho, acabando por dar risada do termo. Não precisava explicar meus pensamentos para ele novamente. Somos todos aculturados, os humanos também, mas Nate sabe disso. Ele soube disso antes do que eu.
Assim como as histórias de Nathan Rowlings e Flores Vivas Calcinadas se fundiram, as histórias de Peregrina, Canção Noturna, Estrelas Refletidas no Gelo e Luz do Sol através do Gelo agora eram a minha também.
Então eu comecei a contá-la.




[1] Semper Fi, ou Semper Fidelis, significa “Sempre Fiel” em latim e é o lema dos fuzileiros navais norte-americanos.

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