sábado, 20 de setembro de 2014

Entre a Luz e as Sombras Capítulo 5

Capítulo 5 – Partida

Dear God the only thing I ask of you is
to hold her when I'm not around,
when I'm much too far away
We all need that person who can be true to you
But I left her when I found her
And now I wish I'd stayed
'Cause I'm lonely and I'm tired
I'm missing you again oh no
Once again
(Dear God – Avenged Sevenfold)

Pensar em Marina fazia meu coração se contorcer em dores horríveis como se estivesse sendo rasgado, como se não fosse mais o lugar das metáforas, mas a manifestação física desse músculo místico estirado em arranjos impossíveis. Durante dois deliciosos anos, ela foi o terço mais importante da pequena família formada por nós duas e seu lindo bebê. E eu os amei, tanto e tão abandonadamente que deixá-los foi a dor mais terrível pela qual já passei.
Marina foi minha filha, minha irmã, minha mais querida amiga. E eu só não desisti de tudo para ficar ao lado dela, porque eu sabia que ela e o pequeno Caio precisariam de mim no futuro. Talvez, quando isso acontecesse, eu pudesse finalmente descansar. Mas ainda não.
Eu tinha precisado deixá-los. Marina não estava pronta para descobrir a verdade naquele momento. Seu bebê, nosso doce bebê, era como eu. Ele seria um de nós, se optasse por sê-lo. Mas isso tinha a hora certa para acontecer. Se Marina soubesse de tudo antes do tempo, podia conduzir o futuro de maneira a influenciar a escolha de seu filho. Uma escolha influenciada inviabilizaria seu destino. Eu não podia deixar que isso acontecesse. Mais tarde, quando chegasse a hora, eu ouviria o chamado e saberia que era hora de voltar para eles. No entanto, há dezoito anos, o chamado que ouvi era para longe de meus amores.
Eu já estava há muito tempo vivendo aquela vida, encarnando aquela identidade. Já estava na hora de mudar ou os outros começariam a perceber que eu não envelhecia. Marina perceberia também, em algum ponto. Isso era algo que sempre tinha me afligido desde o momento em que tinha ficado claro que ela ficaria em minha casa, que ela e o filho precisariam de mim por um bom tempo. Mas eu procurava não pensar nisso. Era meu truque para viver com as coisas com as quais não conseguia lidar: não pensar nelas.
Mas um dia, ao abrir os olhos pela manhã, eu soube. Não havia como fugir, havia chegado a hora de partir. A hora da quebra, como eu tinha me acostumado a chamar esses momentos dolorosos. Só que desta vez, a quebra partiria meu coração em pedacinhos irreconciliáveis. Arrumei tudo com lágrimas nos olhos. Levei alguns dias para passar a casa para o nome de Marina, fazendo-a assinar os documentos achando que eram ainda referentes à venda da casa da mãe dela. Eu queria que ela ficasse bem, que ficasse com as coisas que eram sagradas para mim, como ela era.
Coloquei o relógio e o anel de minha mãe em uma caixa que deixei na cabeceira de sua cama junto com uma carta em que não deixava explicações, apenas a promessa de que eu a amava, que voltaria para ela um dia e que estava fazendo o que era melhor para nosso amado pequeno. Eu jurei para Marina que um dia ela entenderia. Pedi que não me odiasse, que vivesse sua vida com amor e fé e que cuidasse bem de seu precioso filho, pois havia um futuro grandioso reservado pra ele. Então, em meio à madrugada, com uma escuridão maior que a noite dentro de mim, beijei o rosto de Marina e a mão pequena de nosso bebê, e entrei no carro sem olhar par trás.
Demorou semanas até que eu conseguisse “ouvir” o Pai novamente. Enquanto não cessaram as turbulências constantes em meu coração, enquanto a dor não se tornou uma cicatriz sensível, mas fechada. Eu não queria ouvir. Foi parecido com quando perdi minha mãe. Uma espécie de luto infinito se apossou de mim e eu não pude reagir. Eu só queria entrar no carro e voltar. Voltar para minha casa e para minha família. Mas toda vez que eu pensava nisso, imaginava os olhos de Caio brilhando com a luz especial dos servos como eu, daquele jeito único que só um de nós pode reconhecer. Então eu me segurava.
Eu estava num quarto de hotel barato, gastando todas as minhas poucas economias enquanto definhava de dor. Era preciso viver. O mundo lá fora me chamava e, se eu não aceitasse seu chamado, sucumbiria ao desespero. Um de meus semelhantes, novamente meu amigo Alberto, veio em meu auxílio e me ajudou a me “levantar”. Com a força dele para me apoiar, saí e arrumei um emprego do tipo que estava acostumada. Nada que exigisse um currículo muito detalhado, apenas experiência. Era, mais uma vez, um trabalho de garçonete. Eu gosto de trabalhar com comida e ver gente diferente todos os dias.
Com o tempo, Alberto voltou para sua vida e eu fiquei sozinha novamente, mas já podia tomar conta de mim mesma. Fiz o que sempre faço quando chego em uma cidade nova, aluguei um pequeno apartamento e continuei vivendo, mas a dor estava ali. Todos os dias, no curto espaço entre despertar e abrir os olhos, eu via Marina e Caio na minha mente e a dor que isso provocava não deixou de me cegar, de me rasgar por dentro, mas eu abria os olhos e decidia não pensar neles pelo resto do dia. Era preciso me consolar com a lembrança de que a cada dia que passava estava mais próximo o momento de nosso reencontro.
As memórias conscientes eu conseguia bloquear. Mas as inconscientes me escapavam e, vez ou outra, me ferroavam, lembrando que o tal dia ainda não tinha chegado e que este era um a mais longe deles. Como agora, enquanto preparo torradas e o cheiro, a memória olfativa, pulou a barreira do meu raciocínio e foi direto ao meu coração. Vi-me de volta à minha cozinha, vinte anos atrás, preparando o café da manhã para a menina adormecida no sofá.
Mesmo de costas para a porta, pude ouvir sua aproximação, seus passos cuidadosos e envergonhados. Ainda sem me virar, eu disse:
— Fico feliz que tenha decidido ficar. — E olhei para ela a tempo de flagrar os restos de um sorriso que ela desfez, tentando manter sua cara de menina má. — Sente-se aí à mesa que o café da manhã já está saindo. Precisamos conversar.
Marina se sentou sem dizer nada. Ela parecia com fome, então tratei de me apressar com as torradas e servi um pouco de leite para ela. Lembrei-me que tinha umas frutas na geladeira.
— Você gosta de frutas? Posso fazer uma vitamina pra você, se quiser. Tenho mamão, maçã...
— Não gosto, não. Mas obrigada — ela me interrompeu.
— Você precisa se alimentar bem. Seu filho e você vão precisar.
Ela pareceu pensar nisso. O rosto jovem continha uma angústia e um abandono quase insuportáveis. Ela parecia ter medo de mim.
— Por que você está me ajudando? — ela perguntou, finalmente.
— Porque você precisa de ajuda — respondi.
— Mas não faz sentido.
— O que não faz sentido?
— Você nem me conhece. Por que ser tão gentil?
— Você acha que precisamos conhecer alguém para ser gentil com essa pessoa?
— Sei lá! Não estou acostumada a gente como você. Você é esquisita!
— Obrigada — respondi rindo. — Gosto disso. Esquisita é legal.
— Você é doida! — Marina respondeu, balançando a cabeça de um lado para o outro, confusa com minha reação.
— Tudo bem. Mas vamos parar com os elogios, porque já estou ficando sem graça. Vou fazer a vitamina pra você — disse, pegando o copo de leite que tinha posto em frente a ela e jogando-o dentro do liquidificador. — Podemos ligar para sua mãe agora? Você acha que ela já voltou da casa do namorado?
— Não precisa! — ela respondeu assustada. — Eu vou embora daqui a pouco.
Pude sentir a tristeza dela quando disse isso. Aquela pobre menina estava muito assustada e sem rumo.
— Qual é o problema, Marina? Você não quer ver sua mãe?
— Posso ficar aqui mais um pouco? Eu me sinto bem com você.
— Claro que pode! Pode ficar o tempo que quiser, mas você precisa me explicar o que está acontecendo com você.
—Tudo bem — ela suspirou. Em seguida, uma torrente de palavras disparou ininterrupta, enquanto seus olhos ficavam marejados de dor. — Eu estou grávida deste idiota e ele não me quer. Ele chegou até a me bater quando descobriu. Era um dos amigos drogados de minha mãe. Minha mãe anda com muita gente estranha, de todas as idades. Quando ele chegou lá em casa, todo bonito e jovem como eu, achei que minha sorte tinha mudado, mas não! Ele era encrenca pura. Devia ter fugido dele como fugi dos outros!
— Que outros, Marina? De quem você precisava fugir?
— Dos outros homens que vão lá em casa usar drogas com minha mãe. Ela é usuária e trafica também. Eu não quero ter um filho num lugar como a minha casa!
A voz de Marina tinha subido um oitavo e o desespero dela era visível. As lágrimas que ela vinha contendo, sabe-se lá há quanto tempo, rolaram todas de uma vez quando eu a abracei, como se um pouco de carinho as tivesse libertado.
— Tem razão, querida. Você não pode voltar para lá. Em algum momento, porém, vamos tentar acertar as coisas com sua mãe. Eu vou lá na casa dela hoje e aviso que você está aqui.
— Não! Ela vai tentar tirar dinheiro de você. Pode ter certeza que ela nem se deu conta de minha ausência. E, se percebeu, deve estar se sentindo aliviada. Mas no minuto em que você for lá pedir para ela me deixar ficar aqui com você, ela vai ver uma oportunidade de te extorquir.
— Mas você é menor de idade, Marina. Eu posso até ser presa se descobrirem que você está morando aqui comigo sem autorização de sua mãe.
— E quem vai descobrir? Por favor, você sabe que eu vou ter que voltar para lá. E eu não posso!
Ela começou a chorar de novo e eu não pude evitar a tentação de deixar as coisas como estavam. Mas eu não podia fazer isso.
— Confie em mim, Marina. Eu vou falar com sua mãe, mas não vou dizer onde você está. Ela não vai te achar, se você não quiser. Ela só precisa saber que você está bem.
— Não — ela choramingou mais um pouco.
— Vai dar tudo certo. Você confia em mim?
— É estranho, mas eu confio.
— Então tome seu café e eu vou buscar um papel e uma caneta pra você anotar seu endereço.



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