Capítulo 5 – Partida
Dear God the
only thing I ask of you is
to hold her
when I'm not around,
when I'm much
too far away
We all need
that person who can be true to you
But I left
her when I found her
And now I
wish I'd stayed
'Cause I'm
lonely and I'm tired
I'm missing
you again oh no
Once again
(Dear God – Avenged Sevenfold)
Pensar em Marina fazia meu coração se contorcer em dores horríveis como
se estivesse sendo rasgado, como se não fosse mais o lugar das metáforas, mas a
manifestação física desse músculo místico estirado em arranjos impossíveis.
Durante dois deliciosos anos, ela foi o terço mais importante da pequena
família formada por nós duas e seu lindo bebê. E eu os amei, tanto e tão
abandonadamente que deixá-los foi a dor mais terrível pela qual já passei.
Marina foi minha filha, minha irmã, minha mais querida amiga. E eu só não
desisti de tudo para ficar ao lado dela, porque eu sabia que ela e o pequeno
Caio precisariam de mim no futuro. Talvez, quando isso acontecesse, eu pudesse
finalmente descansar. Mas ainda não.
Eu tinha precisado deixá-los. Marina não estava pronta para descobrir a
verdade naquele momento. Seu bebê, nosso
doce bebê, era como eu. Ele seria um de nós, se optasse por sê-lo. Mas isso
tinha a hora certa para acontecer. Se Marina soubesse de tudo antes do tempo,
podia conduzir o futuro de maneira a influenciar a escolha de seu filho. Uma
escolha influenciada inviabilizaria seu destino. Eu não podia deixar que isso
acontecesse. Mais tarde, quando chegasse a hora, eu ouviria o chamado e saberia que era hora de
voltar para eles. No entanto, há dezoito anos, o chamado que ouvi era para
longe de meus amores.
Eu já estava há muito tempo vivendo aquela vida, encarnando aquela
identidade. Já estava na hora de mudar ou os outros começariam a perceber que
eu não envelhecia. Marina perceberia também, em algum ponto. Isso era algo que
sempre tinha me afligido desde o momento em que tinha ficado claro que ela
ficaria em minha casa, que ela e o filho precisariam de mim por um bom tempo.
Mas eu procurava não pensar nisso. Era meu truque para viver com as coisas com
as quais não conseguia lidar: não pensar nelas.
Mas um dia, ao abrir os olhos pela manhã, eu soube. Não havia como fugir,
havia chegado a hora de partir. A hora da quebra, como eu tinha me acostumado a
chamar esses momentos dolorosos. Só que desta vez, a quebra partiria meu
coração em pedacinhos irreconciliáveis. Arrumei tudo com lágrimas nos olhos.
Levei alguns dias para passar a casa para o nome de Marina, fazendo-a assinar
os documentos achando que eram ainda referentes à venda da casa da mãe dela. Eu
queria que ela ficasse bem, que ficasse com as coisas que eram sagradas para
mim, como ela era.
Coloquei o relógio e o anel de minha mãe em uma caixa que deixei na
cabeceira de sua cama junto com uma carta em que não deixava explicações, apenas
a promessa de que eu a amava, que voltaria para ela um dia e que estava fazendo
o que era melhor para nosso amado pequeno. Eu jurei para Marina que um dia ela
entenderia. Pedi que não me odiasse, que vivesse sua vida com amor e fé e que
cuidasse bem de seu precioso filho, pois havia um futuro grandioso reservado
pra ele. Então, em meio à madrugada, com uma escuridão maior que a noite dentro
de mim, beijei o rosto de Marina e a mão pequena de nosso bebê, e entrei no
carro sem olhar par trás.
Demorou semanas até que eu conseguisse “ouvir” o Pai novamente. Enquanto
não cessaram as turbulências constantes em meu coração, enquanto a dor não se
tornou uma cicatriz sensível, mas fechada. Eu não queria ouvir. Foi parecido com quando perdi minha mãe. Uma espécie
de luto infinito se apossou de mim e eu não pude reagir. Eu só queria entrar no
carro e voltar. Voltar para minha casa e para minha família. Mas toda vez que
eu pensava nisso, imaginava os olhos de Caio brilhando com a luz especial dos servos como eu, daquele jeito único que
só um de nós pode reconhecer. Então eu me segurava.
Eu estava num quarto de hotel barato, gastando todas as minhas poucas
economias enquanto definhava de dor. Era preciso viver. O mundo lá fora me
chamava e, se eu não aceitasse seu chamado, sucumbiria ao desespero. Um de meus
semelhantes, novamente meu amigo Alberto, veio em meu auxílio e me ajudou a me
“levantar”. Com a força dele para me apoiar, saí e arrumei um emprego do tipo
que estava acostumada. Nada que exigisse um currículo muito detalhado, apenas
experiência. Era, mais uma vez, um trabalho de garçonete. Eu gosto de trabalhar
com comida e ver gente diferente todos os dias.
Com o tempo, Alberto voltou para sua vida e eu fiquei sozinha novamente,
mas já podia tomar conta de mim mesma. Fiz o que sempre faço quando chego em
uma cidade nova, aluguei um pequeno apartamento e continuei vivendo, mas a dor
estava ali. Todos os dias, no curto espaço entre despertar e abrir os olhos, eu
via Marina e Caio na minha mente e a dor que isso provocava não deixou de me
cegar, de me rasgar por dentro, mas eu abria os olhos e decidia não pensar
neles pelo resto do dia. Era preciso me consolar com a lembrança de que a cada
dia que passava estava mais próximo o momento de nosso reencontro.
As memórias conscientes eu conseguia bloquear. Mas as inconscientes me
escapavam e, vez ou outra, me ferroavam, lembrando que o tal dia ainda não
tinha chegado e que este era um a mais longe deles. Como agora, enquanto
preparo torradas e o cheiro, a memória olfativa, pulou a barreira do meu
raciocínio e foi direto ao meu coração. Vi-me de volta à minha cozinha, vinte
anos atrás, preparando o café da manhã para a menina adormecida no sofá.
Mesmo de costas para a porta, pude ouvir sua aproximação, seus passos
cuidadosos e envergonhados. Ainda sem me virar, eu disse:
— Fico feliz que tenha decidido ficar. — E olhei para ela a tempo de
flagrar os restos de um sorriso que ela desfez, tentando manter sua cara de
menina má. — Sente-se aí à mesa que o café da manhã já está saindo. Precisamos
conversar.
Marina se sentou sem dizer nada. Ela parecia com fome, então tratei de me
apressar com as torradas e servi um pouco de leite para ela. Lembrei-me que
tinha umas frutas na geladeira.
— Você gosta de frutas? Posso fazer uma vitamina pra você, se quiser.
Tenho mamão, maçã...
— Não gosto, não. Mas obrigada — ela me interrompeu.
— Você precisa se alimentar bem. Seu filho e você vão precisar.
Ela pareceu pensar nisso. O rosto jovem continha uma angústia e um
abandono quase insuportáveis. Ela parecia ter medo de mim.
— Por que você está me ajudando? — ela perguntou, finalmente.
— Porque você precisa de ajuda — respondi.
— Mas não faz sentido.
— O que não faz sentido?
— Você nem me conhece. Por que ser tão gentil?
— Você acha que precisamos conhecer alguém para ser gentil com essa
pessoa?
— Sei lá! Não estou acostumada a gente como você. Você é esquisita!
— Obrigada — respondi rindo. — Gosto disso. Esquisita é legal.
— Você é doida! — Marina respondeu, balançando a cabeça de um lado para o
outro, confusa com minha reação.
— Tudo bem. Mas vamos parar com os elogios, porque já estou ficando sem
graça. Vou fazer a vitamina pra você — disse, pegando o copo de leite que tinha
posto em frente a ela e jogando-o dentro do liquidificador. — Podemos ligar
para sua mãe agora? Você acha que ela já voltou da casa do namorado?
— Não precisa! — ela respondeu assustada. — Eu vou embora daqui a pouco.
Pude sentir a tristeza dela quando disse isso. Aquela pobre menina estava
muito assustada e sem rumo.
— Qual é o problema, Marina? Você não quer ver sua mãe?
— Posso ficar aqui mais um pouco? Eu me sinto bem com você.
— Claro que pode! Pode ficar o tempo que quiser, mas você precisa me
explicar o que está acontecendo com você.
—Tudo bem — ela suspirou. Em seguida, uma torrente de palavras disparou
ininterrupta, enquanto seus olhos ficavam marejados de dor. — Eu estou grávida
deste idiota e ele não me quer. Ele chegou até a me bater quando descobriu. Era
um dos amigos drogados de minha mãe. Minha mãe anda com muita gente estranha,
de todas as idades. Quando ele chegou lá em casa, todo bonito e jovem como eu,
achei que minha sorte tinha mudado, mas não! Ele era encrenca pura. Devia ter
fugido dele como fugi dos outros!
— Que outros, Marina? De quem você precisava fugir?
— Dos outros homens que vão lá em casa usar drogas com minha mãe. Ela é
usuária e trafica também. Eu não quero ter um filho num lugar como a minha
casa!
A voz de Marina tinha subido um oitavo e o desespero dela era visível. As
lágrimas que ela vinha contendo, sabe-se lá há quanto tempo, rolaram todas de
uma vez quando eu a abracei, como se um pouco de carinho as tivesse libertado.
— Tem razão, querida. Você não pode voltar para lá. Em algum momento, porém,
vamos tentar acertar as coisas com sua mãe. Eu vou lá na casa dela hoje e aviso
que você está aqui.
— Não! Ela vai tentar tirar dinheiro de você. Pode ter certeza que ela
nem se deu conta de minha ausência. E, se percebeu, deve estar se sentindo
aliviada. Mas no minuto em que você for lá pedir para ela me deixar ficar aqui
com você, ela vai ver uma oportunidade de te extorquir.
— Mas você é menor de idade, Marina. Eu posso até ser presa se
descobrirem que você está morando aqui comigo sem autorização de sua mãe.
— E quem vai descobrir? Por favor, você sabe que eu vou ter que voltar
para lá. E eu não posso!
Ela começou a chorar de novo e eu não pude evitar a tentação de deixar as
coisas como estavam. Mas eu não podia fazer isso.
— Confie em mim, Marina. Eu vou falar com sua mãe, mas não vou dizer onde
você está. Ela não vai te achar, se você não quiser. Ela só precisa saber que
você está bem.
— Não — ela choramingou mais um pouco.
— Vai dar tudo certo. Você confia em mim?
— É estranho, mas eu confio.
— Então tome seu café e eu vou buscar um papel e uma caneta pra você
anotar seu endereço.
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