quarta-feira, 4 de julho de 2018

CD2 - Cap 30


Capítulo 30
Lugar Nenhum Depois da Terra

I have seen many worlds 
For what it's worth 
But I'll never see again the planet earth 
My earth 
Cast adrift amongst the stars 
I float from sun to sun 
Dreaming of the world that gave me birth 
All the places I have been 
Remind me there is none 
To match the green living hills of earth 
'Cos I have seen many worlds 
For what it's worth 
But I'll never see again the planet Earth
(Earth – Smile)

Logan

            Um incontrolável acesso de tosse foi o que me trouxe de volta desta vez. O ar passando por minha garganta como se estivesse envelhecido demais dentro de mim e tivesse que sair, esfarelando as paredes deterioradas da minha laringe.
            Era o quê? A quarta? Quinta vez? Minha cabeça dolorida não conseguia se lembrar no momento. Mas era apenas evidente que não estava ficando mais fácil. Muito pelo contrário.
            — Acalme-se — reconheci a voz de Cal, apoiando com os braços a metade superior do meu corpo que se inclinava penosamente pela crise de tosse que não parava. — Respire fundo e devagar. Isso. Deixe o ar passar. Com calma.
            Concentrei-me no que ele dizia, na voz e nas palavras, e obedeci, tentando trazer Estrela e Lindsay à minha mente enquanto procurava controlar o fluxo de ar. A imagem das duas me chegou como um remédio eficaz, ajudando-me a sentir mais tranquilo.
Lembrar. Isso sim era mais fácil, bem diferente da primeira vez em qualquer corpo, com seu turbilhão de lembranças alheias que chega com tanta força que quase nos fragmenta a sanidade. Acordar no mesmo hospedeiro traz sensações e memórias familiares, porque minhas lembranças já estavam aqui. E era a força delas que me recepcionava toda vez que eu voltava. Apenas das minhas próprias lembranças. Felizmente.
E infelizmente também, porque isso significava... Não! Ele tinha seu tempo enquanto eu estava “fora”. Agora, ao menos por enquanto, eu só precisava pensar em mim mesmo. Por isso não me permitiria sentir culpa por estar aliviado.
            Consegui acalmar minha respiração e conter o acesso. A tosse se tornou intermitente, embora continuasse penosa. Era como vento tinindo por cada sulco do chão gretado do deserto. Eu quase podia ouvir o barulho. E, de fato, meu peito emitia um chiado nada bonito.
            Cal me ajudou a deitar de novo na cama com cuidado e foi até a mesa de cabeceira apanhar um copo d’água, que me ofereceu com um canudo para ficar mais fácil. O primeiro gole não teve nenhum efeito, como se evaporasse ao tocar uma superfície quente, mas o segundo foi um alívio. Devagar, sorvi metade do conteúdo do copo.
            — Você sabe quais são as recomendações, deixe o corpo se acostumar aos movimentos mais sutis antes de tentar algo mais brusco — ele me lembrou.
            De fato, agora que o pior já tinha passado, eu podia sentir o torpor em cada membro se esvaindo e dando lugar a dores musculares e a uma fraqueza irritante.
            Realmente. Não estava ficando melhor.
            Cal colocou mais travesseiros às minhas costas para que eu pudesse ficar sentado. Descartei o canudo e tomei o resto da água com um pouco mais de avidez, mas nem a jarra inteira poderia saciar a sede que eu sentia naquele momento.
            Sede e fome. Por mais que meu corpo fosse nutrido e hidratado pelas soluções que Estrela administrava, além da irremediável fraqueza, eu me sentia inexplicavelmente vazio toda vez que acordava. Mesmo assim sabia que tinha que pegar leve. Nada de inundar meu estômago de líquidos ou comer os pratos substanciais que tinha vontade. Meu corpo precisava se adaptar ao velho ritmo outra vez. Até lá, era o que Jeb chamaria de comida de hospital.
            Observei meus dedos em torno do copo, ligeiramente mais finos, as veias das mãos e braços mais aparentes do que eu me lembrava de já terem estado. Nem precisava fazer um exame mais atento para perceber que eu tinha perdido peso, além de musculatura.
            Não que eu estivesse propriamente preocupado com isso, mas me encolhi ao imaginar que Estrela estaria. E naquele momento, um pouco mais do que em outros, me odiei pelo que estava exigindo de minha mulher.
            — Onde ela está? — perguntei quando encontrei minha voz.
Estrela estivera ao meu lado em todos os outros despertares, mas não neste. Éramos só eu e Cal. Um sobressalto de pânico ameaçou minha sanidade quando tentei imaginar por quê.
            — Estrela foi levar Lindsay na escola, depois ia se encontrar com algumas Almas com quem fez amizade.
Assenti, fingindo para mim mesmo que não havia nada de mais. Eu sabia que ela estava se empenhando muito em trazer aliados para nossa causa, por isso tentava estabelecer o maior número de contatos que podia, sondando a disposição alheia aos humanos e “preparando terreno” para conversas mais difíceis. Além disso, concordamos que Lindsay deveria ser sempre sua prioridade. Ainda assim, não consigo imaginar que ela pedisse a Cal para fazer isso sozinho.
— Está tudo bem em casa? — arrisquei, porque um problema com os humanos era uma possibilidade que justificava a ausência de Estrela e a expressão excessivamente séria no rosto de Cal. Ainda assim, não podia ser nada grave, eu esperava, caso contrário eles teriam me acordado antes.
Vasculhei o quarto com os olhos em busca do meu celular, para poder olhar a data e me situar no tempo, mas ele não estava à vista. Mesmo assim, ao prestar um pouco mais de atenção ao meu entorno, percebi a claridade intensa que se adivinhava pelas frestas das cortinas e que parecia indicar que eram umas onze horas da manhã. Um tanto mais cedo do que tínhamos combinado.
— Está tudo bem na sua casa e na minha também — Cal me esclareceu. — E Estrela só não está aqui porque ela não sabe que você está acordado. Eu é que antecipei um pouco os procedimentos. Queria conversar com você antes de ela chegar, mas estou com medo de ter sido uma imprudência — completou quando tentei girar as pernas para fora da cama e uma náusea terrível me obrigou a deitar outra vez. — Teria sido melhor ter uma Curandeira por perto.
Cal me ajudou a me acomodar e buscou um dos remédios fortalecedores que Estrela costumava aplicar. Era só uma medida emergencial para leigos, segundo o que ela explicou, porque a medicação realmente eficiente tinha que ser misturada com outros componentes, numa espécie de coquetel que apenas gente treinada sabia preparar. Mas eu esperava que ajudasse ao menos um pouco, porque me sentia como se tivesse levado uma surra.
Imediatamente após a primeira borrifada, meus membros trêmulos começaram a se firmar um pouco e meu estômago revoltado provavelmente voltaria a ansiar por comida em algum momento próximo. Por ora, já me sentia satisfeito em conseguir me focar nas palavras de Cal.
— O que foi? O que você quer conversar comigo? Estamos com algum problema? — perguntei ansioso.
— Não sei, meu amigo. — Cal suspirou, recostando-se na poltrona. — Você é quem me diz. Como está se sentindo?
As palavras pareciam um provocação, uma tentativa quase infantil de me fazer admitir que talvez estivesse indo longe demais, mas a postura dele não era, de fato, irônica ou provocativa. Eu não estava levando bronca como se fosse um filho teimoso. Era só um amigo preocupado com outro.
Desviei o olhar para o teto e deixei minhas pálpebras caírem, prestando atenção aos sinais do meu corpo. Minha mente estava menos ágil, como se embotada por uma recente overdose de remédios para dormir, meus membros pareciam levar segundos inteiros para reagir a um comando do meu cérebro e meus músculos doíam. Mas tanto fazia, porque eu nem queria me mexer. Estava cansado e frustrado.
Não havia sequer uma lembrança nova para que eu tivesse esperança. Ao contrário, quanto mais tempo eu me afastava na tentativa de trazer Logan Smith de volta, mais parecia que ele deslizava para fora da minha mente para um lugar que eu não conseguia sequer imaginar onde era. E assim me levava junto com ele.
— Me sinto péssimo — admiti.
Não dissemos nada durante um tempo. Então finalmente olhei para Cal, acostumando-me à estranheza de estar finalmente forte o bastante para me sentar, mas sem a mínima vontade de fazê-lo. Apenas sentindo falta de gostar de ser eu mesmo, de estar confortável em minha pele.
— Mas eu tenho que continuar — insisti, mesmo que ele já tivesse ouvido aquela explicação uma dezena de vezes, provavelmente. — Jeb merece que eu tente trazer o filho dele de volta. E Logan... Se ele tem um pai... Um pai, Cal! Você consegue entender o que isso significaria para alguém como ele? Não posso roubar isso de nenhum dos dois. Não sou o filho que Jeb acha que tem!
— Não, não é mesmo. Porque tudo isso é só “achismo”, concorda? Essa possível paternidade. Ele nem sequer quis que vocês fizessem o exame. Porque pode ser que ele não esteja pronto para admitir, mas no fundo sabe que o resultado, qualquer que seja, não tem a menor importância. Porque você não é o filho que Jeb acha que tem, você é o filho que ele tem de fato, por escolha.
— Cal, eu...
— Já basta, Logan! Eu não quero mais te ajudar a arriscar sua vida. Vou ajudar mesmo assim, você sabe que eu não te daria as costas, mas não suporto mais. Você acha mesmo que Jeb quer que você se destrua dessa maneira? Depois de tanto tempo, esse corpo é tão você quanto seu corpo verdadeiro. É a sua história e a maneira como os outros te conhecem. Como sua filha te conhece. O sangue que corre nessas veias corre nas dela também. Em outro corpo, você continuaria sendo pai dela, mas o que essa loucura toda significaria para a cabecinha dela? Para uma criança!? E se Logan Smith acordar e simplesmente resolver desaparecer, levando consigo a imagem que Lindsay tem de pai? E quanto a Estrela? Você sabe tão bem quanto eu que ela vem se torturando com essas possibilidades dia após dia enquanto você dorme. Quanto tempo mais ela vai ter que se equilibrar nessa corda bamba?
Fiquei em silêncio, atônito pela violência óbvia daquelas verdades que somente um verdadeiro amigo poderia dizer. Mas não foi exatamente por isso que não consegui dizer nada. Não foi pela franqueza veemente e pontiaguda do desabafo de Cal que me calei assustado.
A verdade é que fiquei mudo porque não sabia o que responder. Também não sabia o que fazer. Não era justo impor tanto sofrimento a Estrela e continuar fingindo que estaria tudo bem para Lindsay. Não era justo continuar pedindo a Cal que nos ajudasse em algo com que não concordava mais. E não era justo ter tanto medo de parar, porque a próxima tentativa poderia ser a que funcionaria.
— Eu tenho medo de que dê certo — confessei, por fim. Porque de tudo, isso era o que me parecia mais injusto depois do que eu estava fazendo minha esposa, minha filha e meu amigo passarem.
— E você precisa parar de se punir por isso.
— Me punir? — Franzi o cenho, negando a mim mesmo que tivesse entendido aquilo.
— É o que você está fazendo, não é? Você lamenta por Logan Smith, porque ele foi infeliz e você não. Mas você não pode dar de volta para ele uma felicidade que é sua. Esta é sua vida, Logan! Estrela, Lindsay, todas as suas realizações e os amigos que te amam. É sua vida, não dele. Você tem que aceitar que ele se foi e honrá-lo vivendo o que ele não pôde. Porque a ausência de um pai na vida dele não é culpa sua. Então já que não pode trazer de volta o filho que Jeb acha que teve, seja o filho de que ele precisa. Porque vocês dois, sim, estão vivos. Pare de agir como se não tivesse direito à sua própria vida!
— Como você consegue? Como qualquer um de nós consegue? — perguntei, incoerente. De repente, a culpa que eu sempre tinha evitado tinha se tornado um fardo insuportável. Pela primeira vez, eu entendia de verdade o que Peg e Estrela tinham sentido.
— Eu não sei — disse Cal, aproximando-se da cama e pousando a mão sobre meu ombro. — Mas já está feito. Nós somos quem somos e não podemos mudar o fato de que essa simbiose inédita é necessária para nossa vida aqui.
— Está certo. — Era uma coisa meio tola para se dizer, mas ao mesmo tempo não era. De qualquer jeito, admitir isso era o melhor que eu podia fazer naquele momento. O que não significava que eu agora tivesse um mapa para me guiar pelos caminhos do que era certo ou errado. — Eu não sei o que fazer. Talvez só mais uma vez?
— Estrela está com medo de você morrer, Logan. Ela não confessa, mas cada vez que seus sinais vitais se enfraquecem quando estou tomando conta de você, agradeço por não ser ela a entrar em pânico. Você precisa parar.
— Céus. — Foi só o que fui capaz de pronunciar, porque saber que ela sentia medo sempre me tirava o chão. E Cal sabia muito bem disso quando jogou essa cartada final. — Eu sei. Uma hora ou outra eu teria que parar. Posso muito bem me dar por vencido agora. Não posso mais exigir tanto de vocês e de mim mesmo.
Meu amigo soltou uma longa expiração e sua boca se abriu como se fosse dizer alguma coisa, mas então voltou a se fechar e ele apenas balançou a cabeça.
— Não, não pode — disse depois de um tempo, porque acho que minha última afirmação tinha se parecido muito com uma pergunta que ele achou que deveria responder. — Você fez o que podia. Jeb vai compreender.
— Depois de tanto sofrimento, mesmo assim, esta é a primeira vez que fico aliviado em fracassar.
Meus ombros caíram, mas não era o peso da derrota que os vergava, era o mundo finalmente desmontando das minhas costas. Aquela simples admissão de desistência era uma das coisas mais poderosas que já tinha me acontecido.
Encolhi um pouco as pernas — o que já não parecia um gesto tão penoso — e abri espaço para que Cal se sentasse na outra ponta da cama, de frente para mim.
— Não sinta culpa por esse alívio. Você tentou — ele me lembrou outra vez. —E não se martirize pelo que tivemos que fazer. De certa forma, todos nós precisávamos saber se era possível. Tinha que ser feito em nome de todos, não apenas por sua relação com Jeb. Os humanos precisam ter provas de que neste ponto a supressão é irreversível. Ou nunca conseguiríamos estabelecer a paz entre nós.
Cal tinha razão. E era extraordinário que, imersos como estávamos em nossas próprias questões, nem eu nem Estrela tivéssemos nos dado conta da dimensão do que tentávamos provar.
— Eu não tinha pensado nisso — admiti.
— Nem eu, num primeiro momento. Mas tenho tido muito tempo para pensar no assunto enquanto estamos aqui. E se formos absolutamente honestos, também tenho que confessar que sempre achei inquietante que qualquer humano remanescente venha a descobrir o que aconteceu com Peregrina e Melanie.
— Sim, mas essa é uma informação impossível de conter, uma vez que as células sobreviventes certamente entrarão em contato, portanto vamos ter que lidar com isso. Apesar disso, de certa forma, não me surpreenderia descobrir que eles já sabiam porque podem existir outras Peregrinas por aí. Sempre tive esperança de que não fôssemos casos únicos.
Cal sorriu.
— Certamente que não somos. Seria tão improvável quanto a crença antiga dos humanos de que a Terra é o único planeta com vida. De todo jeito, agora temos certeza de que não podemos voltar atrás nas inserções. Se a experiência de Sunny já tinha comprovado isso há alguns anos para nós, o que fizemos aqui é a prova cabal para os humanos aceitarem.
— Não acho que exista algo como uma prova cabal de que estamos seguros e o processo de paz dará certo. Este é um planeta bastante complexo — observei, sentindo falta outra vez dos tempos em que eu não entendia isso. Contudo, a ignorância era apenas o caminho mais confortável, não o melhor.
— É um planeta bem complexo, de fato. E isso não é algo para se subestimar. No entanto, não escolheríamos outro para viver — disse Cal.
— Depois da Terra, nenhum outro lugar — concordei. — Por mais complicada que seja, esta aqui é nossa casa. Onde está nossa família.
— Então, bem — ele se levantou em um súbito impulso de energia otimista —, vamos tratar de aprumar você para quando Estrela e Lindsay chegarem. Já está mais do que na hora de voltarmos para nossas famílias. De resto, vamos apenas lidar com o que vier quando chegar a hora. Por ora, você precisa de um banho enquanto vou buscar o almoço.
Assenti conformado. Não havia discussão quanto à necessidade das duas coisas.
— Obrigado, Cal — falei depois de conseguir, com a ajuda dele, ficar de pé sobre minhas próprias pernas. — Por tudo, quero dizer.
— É para isso que servem os amigos — afirmou. Então apanhou o casaco fino pendurado no espaldar de uma cadeira e saiu para a claridade ofuscante da tarde que se iniciava na bela Nova Orleans.



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