Capítulo 30
Lugar Nenhum Depois da
Terra
I have seen many worlds
For what it's worth
But I'll never see again the planet earth
My earth
Cast adrift amongst the stars
I float from sun to sun
Dreaming of the world that gave me birth
All the places I have been
Remind me there is none
To match the green living hills of earth
'Cos I have seen many worlds
For what it's worth
But I'll never see again the planet Earth
For what it's worth
But I'll never see again the planet earth
My earth
Cast adrift amongst the stars
I float from sun to sun
Dreaming of the world that gave me birth
All the places I have been
Remind me there is none
To match the green living hills of earth
'Cos I have seen many worlds
For what it's worth
But I'll never see again the planet Earth
Logan
Um
incontrolável acesso de tosse foi o que me trouxe de volta desta vez. O ar
passando por minha garganta como se estivesse envelhecido demais dentro de mim
e tivesse que sair, esfarelando as paredes deterioradas da minha laringe.
Era
o quê? A quarta? Quinta vez? Minha cabeça dolorida não conseguia se lembrar no
momento. Mas era apenas evidente que não estava ficando mais fácil. Muito pelo
contrário.
—
Acalme-se — reconheci a voz de Cal, apoiando com os braços a metade superior do
meu corpo que se inclinava penosamente pela crise de tosse que não parava. —
Respire fundo e devagar. Isso. Deixe o ar passar. Com calma.
Concentrei-me
no que ele dizia, na voz e nas palavras, e obedeci, tentando trazer Estrela e
Lindsay à minha mente enquanto procurava controlar o fluxo de ar. A imagem das
duas me chegou como um remédio eficaz, ajudando-me a sentir mais tranquilo.
Lembrar. Isso sim era
mais fácil, bem diferente da primeira vez em qualquer corpo, com seu turbilhão
de lembranças alheias que chega com tanta força que quase nos fragmenta a
sanidade. Acordar no mesmo hospedeiro traz sensações e memórias familiares,
porque minhas lembranças já estavam aqui. E era a força delas que me
recepcionava toda vez que eu voltava. Apenas das minhas próprias lembranças. Felizmente.
E infelizmente também,
porque isso significava... Não! Ele tinha seu tempo enquanto eu estava “fora”.
Agora, ao menos por enquanto, eu só precisava pensar em mim mesmo. Por isso não
me permitiria sentir culpa por estar aliviado.
Consegui
acalmar minha respiração e conter o acesso. A tosse se tornou intermitente,
embora continuasse penosa. Era como vento tinindo por cada sulco do chão
gretado do deserto. Eu quase podia ouvir o barulho. E, de fato, meu peito
emitia um chiado nada bonito.
Cal
me ajudou a deitar de novo na cama com cuidado e foi até a mesa de cabeceira
apanhar um copo d’água, que me ofereceu com um canudo para ficar mais fácil. O
primeiro gole não teve nenhum efeito, como se evaporasse ao tocar uma
superfície quente, mas o segundo foi um alívio. Devagar, sorvi metade do
conteúdo do copo.
—
Você sabe quais são as recomendações, deixe o corpo se acostumar aos movimentos
mais sutis antes de tentar algo mais brusco — ele me lembrou.
De
fato, agora que o pior já tinha passado, eu podia sentir o torpor em cada
membro se esvaindo e dando lugar a dores musculares e a uma fraqueza irritante.
Realmente.
Não estava ficando melhor.
Cal
colocou mais travesseiros às minhas costas para que eu pudesse ficar sentado.
Descartei o canudo e tomei o resto da água com um pouco mais de avidez, mas nem
a jarra inteira poderia saciar a sede que eu sentia naquele momento.
Sede
e fome. Por mais que meu corpo fosse nutrido e hidratado pelas soluções que
Estrela administrava, além da irremediável fraqueza, eu me sentia
inexplicavelmente vazio toda vez que acordava. Mesmo assim sabia que tinha que
pegar leve. Nada de inundar meu estômago de líquidos ou comer os pratos
substanciais que tinha vontade. Meu corpo precisava se adaptar ao velho ritmo
outra vez. Até lá, era o que Jeb chamaria de comida de hospital.
Observei
meus dedos em torno do copo, ligeiramente mais finos, as veias das mãos e
braços mais aparentes do que eu me lembrava de já terem estado. Nem precisava
fazer um exame mais atento para perceber que eu tinha perdido peso, além de
musculatura.
Não
que eu estivesse propriamente preocupado com isso, mas me encolhi ao imaginar
que Estrela estaria. E naquele momento, um pouco mais do que em outros, me
odiei pelo que estava exigindo de minha mulher.
—
Onde ela está? — perguntei quando encontrei minha voz.
Estrela estivera ao meu
lado em todos os outros despertares, mas não neste. Éramos só eu e Cal. Um
sobressalto de pânico ameaçou minha sanidade quando tentei imaginar por quê.
—
Estrela foi levar Lindsay na escola, depois ia se encontrar com algumas Almas
com quem fez amizade.
Assenti, fingindo para
mim mesmo que não havia nada de mais. Eu sabia que ela estava se empenhando
muito em trazer aliados para nossa causa, por isso tentava estabelecer o maior
número de contatos que podia, sondando a disposição alheia aos humanos e
“preparando terreno” para conversas mais difíceis. Além disso, concordamos que
Lindsay deveria ser sempre sua prioridade. Ainda assim, não consigo imaginar
que ela pedisse a Cal para fazer isso sozinho.
— Está tudo bem em casa?
— arrisquei, porque um problema com os humanos era uma possibilidade que
justificava a ausência de Estrela e a expressão excessivamente séria no rosto
de Cal. Ainda assim, não podia ser nada grave, eu esperava, caso contrário eles
teriam me acordado antes.
Vasculhei o quarto com os
olhos em busca do meu celular, para poder olhar a data e me situar no tempo, mas
ele não estava à vista. Mesmo assim, ao prestar um pouco mais de atenção ao meu
entorno, percebi a claridade intensa que se adivinhava pelas frestas das
cortinas e que parecia indicar que eram umas onze horas da manhã. Um tanto mais
cedo do que tínhamos combinado.
— Está tudo bem na sua
casa e na minha também — Cal me esclareceu. — E Estrela só não está aqui porque
ela não sabe que você está acordado. Eu é que antecipei um pouco os
procedimentos. Queria conversar com você antes de ela chegar, mas estou com
medo de ter sido uma imprudência — completou quando tentei girar as pernas para
fora da cama e uma náusea terrível me obrigou a deitar outra vez. — Teria sido
melhor ter uma Curandeira por perto.
Cal me ajudou a me
acomodar e buscou um dos remédios fortalecedores que Estrela costumava aplicar.
Era só uma medida emergencial para leigos, segundo o que ela explicou, porque a
medicação realmente eficiente tinha que ser misturada com outros componentes,
numa espécie de coquetel que apenas gente treinada sabia preparar. Mas eu
esperava que ajudasse ao menos um pouco, porque me sentia como se tivesse
levado uma surra.
Imediatamente após a
primeira borrifada, meus membros trêmulos começaram a se firmar um pouco e meu
estômago revoltado provavelmente voltaria a ansiar por comida em algum momento
próximo. Por ora, já me sentia satisfeito em conseguir me focar nas palavras de
Cal.
— O que foi? O que você
quer conversar comigo? Estamos com algum problema? — perguntei ansioso.
— Não sei, meu amigo. —
Cal suspirou, recostando-se na poltrona. — Você é quem me diz. Como está se
sentindo?
As palavras pareciam um
provocação, uma tentativa quase infantil de me fazer admitir que talvez
estivesse indo longe demais, mas a postura dele não era, de fato, irônica ou
provocativa. Eu não estava levando bronca como se fosse um filho teimoso. Era
só um amigo preocupado com outro.
Desviei o olhar para o
teto e deixei minhas pálpebras caírem, prestando atenção aos sinais do meu
corpo. Minha mente estava menos ágil, como se embotada por uma recente overdose
de remédios para dormir, meus membros pareciam levar segundos inteiros para
reagir a um comando do meu cérebro e meus músculos doíam. Mas tanto fazia,
porque eu nem queria me mexer. Estava cansado e frustrado.
Não havia sequer uma
lembrança nova para que eu tivesse esperança. Ao contrário, quanto mais tempo
eu me afastava na tentativa de trazer Logan Smith de volta, mais parecia que
ele deslizava para fora da minha mente para um lugar que eu não conseguia
sequer imaginar onde era. E assim me levava junto com ele.
— Me sinto péssimo —
admiti.
Não dissemos nada durante
um tempo. Então finalmente olhei para Cal, acostumando-me à estranheza de estar
finalmente forte o bastante para me sentar, mas sem a mínima vontade de
fazê-lo. Apenas sentindo falta de gostar de ser eu mesmo, de estar confortável
em minha pele.
— Mas eu tenho que
continuar — insisti, mesmo que ele já tivesse ouvido aquela explicação uma
dezena de vezes, provavelmente. — Jeb merece que eu tente trazer o filho dele
de volta. E Logan... Se ele tem um pai... Um pai, Cal! Você consegue entender o
que isso significaria para alguém como ele? Não posso roubar isso de nenhum dos
dois. Não sou o filho que Jeb acha que tem!
— Não, não é mesmo.
Porque tudo isso é só “achismo”, concorda? Essa possível paternidade. Ele nem
sequer quis que vocês fizessem o exame. Porque pode ser que ele não esteja
pronto para admitir, mas no fundo sabe que o resultado, qualquer que seja, não
tem a menor importância. Porque você não é o filho que Jeb acha que tem, você é o filho que ele tem de fato, por escolha.
— Cal, eu...
— Já basta, Logan! Eu não
quero mais te ajudar a arriscar sua vida. Vou ajudar mesmo assim, você sabe que
eu não te daria as costas, mas não suporto mais. Você acha mesmo que Jeb quer
que você se destrua dessa maneira? Depois de tanto tempo, esse corpo é tão você
quanto seu corpo verdadeiro. É a sua história e a maneira como os outros te
conhecem. Como sua filha te conhece. O sangue que corre nessas veias corre nas
dela também. Em outro corpo, você continuaria sendo pai dela, mas o que essa
loucura toda significaria para a cabecinha dela? Para uma criança!? E se Logan Smith
acordar e simplesmente resolver desaparecer, levando consigo a imagem que
Lindsay tem de pai? E quanto a Estrela? Você sabe tão bem quanto eu que ela vem
se torturando com essas possibilidades dia após dia enquanto você dorme. Quanto
tempo mais ela vai ter que se equilibrar nessa corda bamba?
Fiquei em silêncio,
atônito pela violência óbvia daquelas verdades que somente um verdadeiro amigo
poderia dizer. Mas não foi exatamente por isso que não consegui dizer nada. Não
foi pela franqueza veemente e pontiaguda do desabafo de Cal que me calei assustado.
A verdade é que fiquei
mudo porque não sabia o que responder. Também não sabia o que fazer. Não era
justo impor tanto sofrimento a Estrela e continuar fingindo que estaria tudo
bem para Lindsay. Não era justo continuar pedindo a Cal que nos ajudasse em
algo com que não concordava mais. E não era justo ter tanto medo de parar,
porque a próxima tentativa poderia ser a que funcionaria.
— Eu tenho medo de que dê
certo — confessei, por fim. Porque de tudo, isso era o que me parecia mais
injusto depois do que eu estava fazendo minha esposa, minha filha e meu amigo
passarem.
— E você precisa parar de
se punir por isso.
— Me punir? — Franzi o
cenho, negando a mim mesmo que tivesse entendido aquilo.
— É o que você está
fazendo, não é? Você lamenta por Logan Smith, porque ele foi infeliz e você
não. Mas você não pode dar de volta para ele uma felicidade que é sua. Esta é sua vida, Logan! Estrela, Lindsay, todas
as suas realizações e os amigos que te amam. É sua vida, não dele. Você tem que
aceitar que ele se foi e honrá-lo vivendo o que ele não pôde. Porque a ausência
de um pai na vida dele não é culpa sua. Então já que não pode trazer de volta o
filho que Jeb acha que teve, seja o filho de que ele precisa. Porque vocês
dois, sim, estão vivos. Pare de agir como se não tivesse direito à sua própria vida!
— Como você consegue?
Como qualquer um de nós consegue? — perguntei, incoerente. De repente, a culpa
que eu sempre tinha evitado tinha se tornado um fardo insuportável. Pela
primeira vez, eu entendia de verdade o que Peg e Estrela tinham sentido.
— Eu não sei — disse Cal,
aproximando-se da cama e pousando a mão sobre meu ombro. — Mas já está feito.
Nós somos quem somos e não podemos mudar o fato de que essa simbiose inédita é
necessária para nossa vida aqui.
— Está certo. — Era uma
coisa meio tola para se dizer, mas ao mesmo tempo não era. De qualquer jeito, admitir
isso era o melhor que eu podia fazer naquele momento. O que não significava que
eu agora tivesse um mapa para me guiar pelos caminhos do que era certo ou
errado. — Eu não sei o que fazer. Talvez só mais uma vez?
— Estrela está com medo
de você morrer, Logan. Ela não confessa, mas cada vez que seus sinais vitais se
enfraquecem quando estou tomando conta de você, agradeço por não ser ela a
entrar em pânico. Você precisa parar.
— Céus. — Foi só o que
fui capaz de pronunciar, porque saber que ela sentia medo sempre me tirava o
chão. E Cal sabia muito bem disso quando jogou essa cartada final. — Eu sei. Uma
hora ou outra eu teria que parar. Posso muito bem me dar por vencido agora. Não
posso mais exigir tanto de vocês e de mim mesmo.
Meu amigo soltou uma
longa expiração e sua boca se abriu como se fosse dizer alguma coisa, mas então
voltou a se fechar e ele apenas balançou a cabeça.
— Não, não pode — disse
depois de um tempo, porque acho que minha última afirmação tinha se parecido
muito com uma pergunta que ele achou que deveria responder. — Você fez o que
podia. Jeb vai compreender.
— Depois de tanto
sofrimento, mesmo assim, esta é a primeira vez que fico aliviado em fracassar.
Meus ombros caíram, mas
não era o peso da derrota que os vergava, era o mundo finalmente desmontando
das minhas costas. Aquela simples admissão de desistência era uma das coisas mais
poderosas que já tinha me acontecido.
Encolhi um pouco as pernas
— o que já não parecia um gesto tão penoso — e abri espaço para que Cal se sentasse
na outra ponta da cama, de frente para mim.
— Não sinta culpa por
esse alívio. Você tentou — ele me lembrou outra vez. —E não se martirize pelo
que tivemos que fazer. De certa forma, todos nós precisávamos saber se era
possível. Tinha que ser feito em nome de todos, não apenas por sua relação com
Jeb. Os humanos precisam ter provas de que neste ponto a supressão é
irreversível. Ou nunca conseguiríamos estabelecer a paz entre nós.
Cal tinha razão. E era extraordinário
que, imersos como estávamos em nossas próprias questões, nem eu nem Estrela tivéssemos
nos dado conta da dimensão do que tentávamos provar.
— Eu não tinha pensado
nisso — admiti.
— Nem eu, num primeiro
momento. Mas tenho tido muito tempo para pensar no assunto enquanto estamos
aqui. E se formos absolutamente honestos, também tenho que confessar que sempre
achei inquietante que qualquer humano remanescente venha a descobrir o que
aconteceu com Peregrina e Melanie.
— Sim, mas essa é uma
informação impossível de conter, uma vez que as células sobreviventes
certamente entrarão em contato, portanto vamos ter que lidar com isso. Apesar
disso, de certa forma, não me surpreenderia descobrir que eles já sabiam porque
podem existir outras Peregrinas por aí. Sempre tive esperança de que não
fôssemos casos únicos.
Cal sorriu.
— Certamente que não
somos. Seria tão improvável quanto a crença antiga dos humanos de que a Terra é
o único planeta com vida. De todo jeito, agora temos certeza de que não podemos
voltar atrás nas inserções. Se a experiência de Sunny já tinha comprovado isso
há alguns anos para nós, o que fizemos aqui é a prova cabal para os humanos
aceitarem.
— Não acho que exista
algo como uma prova cabal de que estamos seguros e o processo de paz dará
certo. Este é um planeta bastante complexo — observei, sentindo falta outra vez
dos tempos em que eu não entendia isso. Contudo, a ignorância era apenas o
caminho mais confortável, não o melhor.
— É um planeta bem
complexo, de fato. E isso não é algo para se subestimar. No entanto, não
escolheríamos outro para viver — disse Cal.
— Depois da Terra, nenhum
outro lugar — concordei. — Por mais complicada que seja, esta aqui é nossa
casa. Onde está nossa família.
— Então, bem — ele se
levantou em um súbito impulso de energia otimista —, vamos tratar de aprumar
você para quando Estrela e Lindsay chegarem. Já está mais do que na hora de
voltarmos para nossas famílias. De resto, vamos apenas lidar com o que vier
quando chegar a hora. Por ora, você precisa de um banho enquanto vou buscar o
almoço.
Assenti conformado. Não
havia discussão quanto à necessidade das duas coisas.
— Obrigado, Cal — falei depois
de conseguir, com a ajuda dele, ficar de pé sobre minhas próprias pernas. — Por
tudo, quero dizer.
— É para isso que servem
os amigos — afirmou. Então apanhou o casaco fino pendurado no espaldar de uma
cadeira e saiu para a claridade ofuscante da tarde que se iniciava na bela Nova
Orleans.
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