terça-feira, 12 de junho de 2018

CD2 - Cap 29


Capítulo 29 — De Esperança e Dor

The door is open to go through
If I could I would come, too
But the path is made by you
As you're walking start singing and stop talking
Oh, if I could hear myself when I say
(Oh love) love is bigger than anything in its way
So young to be the words of your own song
I know the rage in you is strong
Write a world where we can belong
To each other and sing it like no other
(Love Is Bigger Than Anything In It’s Way – U2)

Doc

            Sharon acha intrigante a minha maneira de ver o mundo.
            É bonitinha, ela diz, o que é um adjetivo estranho para uma mulher como ela.
            Um furacão. Uma ruiva explosiva, no melhor e no pior sentido.
            No mundo de antes, talvez ela não perdesse dois segundos comigo, porque eu sou aquele cara em quem ninguém nunca repara por mais tempo do que isso.
Não chega a ser um problema, porque estou acostumado. E também não é que eu seja um sujeito totalmente desinteressante. Já me disseram que sou cínico demais para ter baixa autoestima. Portanto essa não é um tipo banal de constatação autodepreciativa.
É só o jeito como as coisas são.
Somos diferentes, as pessoas. E eu gosto de observar essas diferenças. Observo, tiro conclusões, catalogo em minha mente. Acho que cheguei a uma boa noção de como as coisas funcionam fazendo isso. Por esse motivo tenho um respeito saudável pela agressividade natural de cada um, pela maneira como os indivíduos encaram suas paixões, suas perdas e frustrações. Na maior parte do tempo, tento não interferir nas decisões de ninguém e reservar meus julgamentos para quando são requisitados.
Essa é a parte que Sharon acha “bonitinha”. Do ponto de vista dela, eu sou paciente e sei lidar com os outros de forma empática. Palavras da bela ruiva que eu simplesmente aceito de bom grado, tentando não ficar muito envaidecido para não estragar a boa impressão. Porque nesta nova realidade eu sou o tipo de homem por quem ela se interessou e na vida toda, aparentemente, essas são qualidades que ela aprecia muito.
Entenda, Sharon era professora de crianças no mundo de antes. E continuou exercendo essa vocação em nossa célula. Primeiro com Jamie, Kate, Isaiah e Liberdade. Depois com os pequenos John e Lindsay, na medida do que a pouca idade deles permite. Empatia e paciência são, portanto, condições que ela considera sine qua non [1] para um ser humano de respeito.
Pouca gente sabe disso, porém.
Porque ela acabou criando para si uma carapuça impenetrável de mulher furiosa e inacessível. Uma defesa que as circunstâncias da vida fizeram parecer necessária. Mas é uma capa destacável. Prova disso era que estávamos juntos ali, à espera de seres que ela tinha passados a década vendo como inimigos.
— Eles parecem amigáveis — comentou nervosa enquanto ajeitava repetidamente os óculos escuros, nossa tática para reduzir o impacto de nossos olhos humanos sobre os amigos de Logan.
— Fique calma, Shar. Temos tudo sob controle.
— Temos? — ela perguntou com aquele jeito provocativo que, por minha vez, sempre achei tão atraente.
Mesmo naquela situação, a capacidade que Sharon tinha de, com um palavra ou um olhar, me fazer questionar o que acreditava ainda era muito mais interessante do que o conforto das certezas. Então apenas sorri em resposta e segurei firme a mão dela.
Observei-os de longe, descendo do carro com Logan. Uma jovem negra e um senhor oriental com aquele típico ar venerável de filmes de artes marciais. A claridade da tarde batendo em cheio em seus rostos me impediu de sondar suas expressões, mas fiquei imaginando o que eles viam em nós também, ali do outro lado. Que tipo de expectativas tinham? Era muito difícil teorizar àquela altura.
Obviamente, embora não conhecessem seus interlocutores, David e Flora não estavam alheios ao assunto que os trouxera até ali. Houve uma conversa prévia com Logan, conforme combinamos, mas ainda assim estávamos bastante nervosos com o modo como tudo transcorreria quando soubessem que éramos humanos.
Parecia loucura que estivessem vindo às cegas a um encontro no meio de uma estrada rural, à beira de uma plantação por onde poderíamos desaparecer rapidamente por uma rota pré-traçada e nos encontrar com Jared e Brandt do outro lado para fugir. E onde também se escondiam, a uma distância segura e em pontos diferentes, Lily e Jamie, devidamente armados com as pistolas de paralisium com que Logan os treinou. Mesmo assim, eu podia entender por que eles não tinham sido capazes de vislumbrar perigo algum.
Porque, exatamente como nós, confiavam em Logan.
Essa ao menos era outra coisa que tínhamos em comum e talvez devesse ser um motivo para não nos preocuparmos tanto. Ainda que eu pudesse adivinhar os olhares tensos de Lily e Jamie, sentir o suor que empapava a mão de Sharon na minha e a gagueira que ameaçava tomar minha voz.  
Foi consenso que não deveríamos dar a eles um aviso prévio de com quem estavam lidando. Por mais que Logan e Estrela confiassem nos dois, nós ainda precisávamos, naquele ponto, do pouco senso de segurança que o elemento surpresa fornecia, dando-nos uma ilusão de vantagem.
No entanto, eu começava a questionar se aquela tinha sido mesmo a melhor estratégia.
Como falar de confiança, da possibilidade de igualdade, enquanto víamos a nós mesmos em uma posição tão diferente dessa?
            Finalmente, a alguns passos de nós, pude olhá-los bem e perceber que David sorria inocentemente, enquanto Flora parecia intrigada, olhando de nós para Logan. Então tudo aconteceu ao mesmo tempo.
Por um milésimo de segundo, ela parou e ele continuou seu movimento, a mão estendida em nossa direção, em cumprimento. Sharon moveu-se instintiva e milimetricamente para trás, como se achasse que algo naquele gesto pudesse representar perigo. Flora pousou a mão no braço de David, abaixando-o suavemente.
— Não queremos assustar vocês — disse em um tom quase maternal.
O cenho de David franziu-se em confusão, mas em seguida os óculos que usávamos chamaram sua atenção e, antes mesmo que eu tivesse a chance de tirar os meus, vi que ele também tinha entendido o que éramos.
— Humanos — murmurou. — Como...?
— Meu nome é Eustace Miller — despejei, surpreendendo a mim mesmo também. — Mas no mundo de agora todos me chamam de Doc.
Recebi um breve olhar de censura de Logan e sabia, mesmo sem ver, que Sharon devia estar furiosa comigo por contrariar os nossos planos e dar meu nome real. Queríamos que eles soubessem o mínimo possível sobre nós, mas ali, diante dos dois, eu simplesmente não conseguia vislumbrar uma conversa honesta que começasse com uma falsa apresentação, com uma mentira tão básica e ainda assim tão definidora.
De alguma forma, senti que Logan concordava comigo quando veio para junto de mim e bateu de leve no meu ombro. Esse gesto de confiança me deu segurança e, olhando diretamente para David, foi minha vez de estender-lhe um cumprimento que ele correspondeu sem nenhuma hesitação visível.
— Ah, um médico — ele disse. — Eu também já fui um. Quer dizer, David Yoshida era. Mas no mundo de agora, como você disse, pode me chamar apenas de David. Eu sou um Conselheiro, assim como meus dois amigos aqui. Sou um Representante também. Cuidamos do bem comum, por assim dizer.
— Sim, eu sei. É um prazer conhecê-lo, David — respondi. — E a você, Flora. Como vai?
Flora sorriu para mim e aceitou a mão que eu lhe oferecia com curiosidade acentuada. Então ela olhou para Sharon, à espera de alguma reação que não veio naquele momento.
            — É muito bom conhecê-los — falou empolgada de qualquer forma. — Mas... como...? Como foi que Tempestade Solar encontrou vocês?
            — Logan — ele corrigiu. — Meu nome é Logan. E essas pessoas têm sido nossos amigos... Nossa família há muito tempo.
            — “Nossa”? — ela questionou, sem deixar que o plural lhe escapasse.
            — Sim. Há outros deles e outros de nós vivendo juntos — expliquei. — Somos uma família grande. Logan e sua esposa foram os últimos a chegar, mas têm nos ajudado a sobreviver com dignidade. E tenho orgulho de dizer que ajudei a trazer a pequena Lindsay ao mundo.
            — Mas isso é simplesmente fantástico! — Flora vibrou.
            Ouvi Sharon suspirar e senti que a tensão estava quebrada, talvez pela jovialidade da menina, talvez pela agudeza óbvia da familiaridade com as Almas que eu havia mencionado. De qualquer jeito, ela se aproximou.
            — Perdoem meu comportamento — pediu. — Não queria fazer parecer que estava com medo. Só estávamos nervosos com a reação de vocês.
            — Nós entendemos. Vocês não são os primeiros humanos que conhecemos, claro, mas todos os outros são nascidos em nossas comunidades. Então também é bem estranho para nós — disse Flora, se aproximando de Sharon como uma criança curiosa, destemida e vagamente sem critério. — Seus olhos são lindos!
            — Obrigada — ela respondeu um pouco sem graça, mas inteiramente desarmada pela espontaneidade inocente da menina. — Eu... Nós tínhamos muito a dizer, mas francamente já não sei por onde começar.
            — Então permita-me, senhorita — disse David com uma cortesia que pareceria meio exagerada para qualquer um, mas para ele servia como uma luva. — Nós gostaríamos de retribuir a confiança que estão nos depositando. Por isso podemos começar pela garantia de que não perguntaremos nada além do que quiserem revelar. Estamos aqui para ouvir. E se no final dessa conversa vocês decidirem partir para longe de nós, recebam a nossa palavra de que jamais os procuraremos.
            — Ah, mas, por favor, não façam isso! — pediu Flora, me lembrando perfeitamente a forma como Jamie Stryder conseguia as coisas. David riu.
            — De fato. Seja lá o que for que viemos fazer aqui, desejamos que não seja a última vez que nos vemos, porque tenho a sensação de que o motivo de nos encontrarmos é porque temos projetos semelhantes para o futuro, não é mesmo?
            — Logan nos disse o que os Representantes pretendem. A evacuação em massa, segundo decisão dos humanos — esclareceu Sharon. — É incrível imaginar que isso seja possível, mas ajudou a mudar meu ponto de vista. Pela primeira vez em muito tempo, eu pude voltar a desejar a liberdade. — Então ela se virou para mim e sorriu, lembrando uma conversa que tivéramos tempos atrás. — E filhos. Esse mundo que consigo imaginar torna possível acreditar nisso. Nossa esperança é conseguir uma forma dessa mudança de perspectiva acontecer com outros resistentes também. Tanto do nosso lado quanto do de vocês.
            — Entendo que provavelmente vocês acharam que tinham que nos convencer, mas já estamos convencidos — argumentou David. — Apenas nos faltava a certeza de que os humanos, em especial os resistentes, estavam abertos ao diálogo. Contudo, senhorita, temo que da mesma forma que Flora e eu não podemos falar por todos de nossa espécie, vocês também não podem falar pela de vocês.
            — Talvez não — intervi. — Mas precisamos começar de algum lugar. A invasão, a perda de nosso mundo e de nossos entes queridos é uma ferida aberta, não podemos negar. Porém é fato consumado. É preciso agora lidar com o que nos restou e o que nos resta é o futuro. Continuaremos como fugitivos ou tentaremos restaurar a paz?
            — Colocada assim, a questão é muito lógica — observou Flora. — Mas essa visão é racional demais, não combina com as atitudes passionais que aprendemos aqui. Nós não conhecíamos o ódio, a culpa, o medo, mas agora compreendemos a violência desses sentimentos. Os humanos nos odeiam, por isso muitas Almas sentem medo.
            Sharon se retesou, do jeito que fazia quando estava procurando as palavras certas e não encontrava, e pude sentir a frustração da qual eu mesmo compartilhava, porque simplesmente não havia a coisa certa a dizer ali. Flora tinha razão, havia muito medo e ódio entre nós.
            Tínhamos ensaiado aquela conversa dezenas de vezes com Peg e Estrela, tentando imaginar o que dizer a respeito de cada objeção que pudesse ser levantada. Mas a questão era que, por mais que tentassem, as Almas aculturadas não podiam compartilhar da perspectiva daquelas que conheciam os humanos apenas como inimigos. Por isso, como nas nossas inúmeras conversas anteriores, estávamos de volta ao mesmo beco sem saída onde sempre acabávamos e de onde nunca conseguíamos escapatória.
Como em todas as outras vezes, diante da objeção mais previsível de todas, estávamos subitamente sem argumentos.
— Não estamos dizendo que não seja possível — emendou David, a título de consolo. — Apenas que há uma jornada longa a ser galgada com pequenos passos. Mas estamos juntos nela.
— Não é impossível — disse Sharon. —  O ódio... Ele existe, mas pode ser superado.
— É nossa grande esperança também — concordou David. — Mas as outras Almas...
— Eu odeio vocês — ela o interrompeu, e todos os olhos se arregalaram na direção dela, exceto pelos de David, que se tornaram ainda mais compassivos do que antes, como se de algum jeito pudesse compreender muito bem. — Mas... — Sharon fungou, lágrimas se adivinhando em sua voz. — Não é como... Não é uma declaração de guerra, entendem? Deixem-me explicar.
Até eu, que estava acostumado aos arroubos de Sharon, fiquei surpreso pelo caminho que ela escolheu, mas de alguma forma David parecia tentar acompanhá-la.
— Estamos ouvindo, criança — ele disse baixo e respeitosamente.
— Sim, queremos entender — confirmou Flora.
Sharon respirou fundo outra vez e se preparou. Sem saber o que fazer, Logan e eu apenas esperamos.
E talvez — não que eu fosse admitir isso para ela — uma pequena oração pelas causas impossíveis tenha me voltado subitamente à memória.
— Quando vocês começaram a chegar, meu tio percebeu que havia algo estranho, algo a ser temido. Bem, vocês não podem negar que... — Sharon esfregou as costas da mão no nariz, depois limpou uma lágrima fujona, respirando um pouco para firmar a voz. — Não dá pra negar que ele tinha razão, embora quase ninguém tenha acreditado. Ele é um homem muito excêntrico, meu tio. Diferente. Os humanos não confiam no diferente.
“É o irmão da minha mãe, ela o ama e eu também, mas eu estava no que parecia o auge da minha vida, preocupada com inúmeras outras coisas, construindo meu futuro, então... Certo, ele nos alertou. Minha mãe queria acreditar, mas meu pai estava cético e eu também. Percebíamos as estranhezas, mas simplesmente era mais fácil achar que meu tio estava louco e que nossa própria imaginação tinha sido contaminada por ele, que ia ficar tudo bem se parássemos de procurar algo errado. Então nós ficamos tempo demais cegos pelo conforto de nossas certezas, até já ser muito tarde...
Segurei a mão dela, todavia ciente de que nada seria o bastante para amenizar a dor daquelas lembranças, porque agora eu entendia aonde ela queria chegar.
Para mim tinha sido muito fácil. Jeb era meu único amigo de verdade. Eu fui com ele sem hesitar, porque não tinha nada de importante para deixar para trás.
Um consultório de cidade pequena, umas idas ao bar para satisfazer um gosto nocivo por álcool que eu tentava controlar, mas que de vez em quando me permitia, um casamento desfeito e alguns conhecidos. Essa era minha bagagem. O que me impedia de “empacotar” tudo e ir numa aventura, mesmo que não desse em nada?
Mas então eu vi.
A Sra. Fowley, minha paciente mais antiga e que tinha se resignado a um diagnóstico de linfoma em seus estágios finais. Em um dia eu estava lidando com a ideia de que em menos de um mês provavelmente estaria em seu velório. E no outro, a velhinha esbanjava disposição fazendo exercícios no parque.
Não resisti e quis falar com ela, cheguei mesmo a vislumbrar o brilho prateado em seus olhos, mas Jeb me impediu, dizendo que devíamos fugir de qualquer interação que não fosse indispensável. Eu não soube bem o que pensar na hora, mas naquela noite mesmo, me vi dentro de um furgão com Jeb e outros “loucos” partindo para o deserto. Depois disso, quanto mais eu me distanciava da vida de antes, mais suspeita ela me parecia, até que não houve mais dúvidas.
Para Sharon, no entanto, o processo tinha acontecido de forma abrupta e violenta.  E ela tinha guardado o veneno indissolúvel disso.
— Meu pai e eu não conseguíamos mais negar que havia algo errado — continuou. — Todo mundo estava se comportando estranho e os sinais estavam por toda parte, acordos para a paz mundial e coisas assim. — Ela riu amargamente da ironia. —  Minha mãe insistia que devíamos ir encontrar meu tio e nós finalmente concordamos. Acho que os vizinhos desconfiaram da movimentação estranha e nos convidaram para um jantar. Vizinhos com quem mal falávamos! Meu pai garantiu que estaríamos lá em algumas horas, mas em vez disso nós fugimos imediatamente.
Os olhos dela estavam vermelhos e outra lágrima fujona correu por seu rosto atormentado. Pouquíssimas vezes eu a tinha visto assim e a primeira foi quando me contou aquela história. Exatamente nesse ponto, se muito não me engano. Passei meus braços em torno dela para sustentar parte de seu peso e tive vontade de enxugar a lágrima, mas sabia que ela não gostaria que eu fizesse isso.
Gestos de carinho a comoviam e a deixavam vulnerável. E ela não gostava que a vissem assim. Por isso eu sabia o quanto estava sendo difícil contar aquilo a Logan e a dois estranhos, ainda que tão gentis.
— Nós estávamos assustados e meu pai pisou fundo no acelerador. Aquilo atraiu a atenção de outros motoristas, que agora eu sei que eram Buscadores, e fomos perseguidos por um bom trecho de estrada. A gente conseguiu ganhar um pouco de distância e achamos que tínhamos despistado quem nos seguia, mas ainda estávamos muito rápido e então... Não sei explicar como, meu pai perdeu a direção e o carro capotou — ela disse de um jeito comovido, as lágrimas que não permitia que corressem embargando sua voz. — Eu não sei o que aconteceu, que tipo de milagre... só sei que minha mãe e eu mal nos ferimos. Mas meu pai... ele ficou preso nas ferragens. Vivo e consciente, mas estava com tanta dor! Tinha muitos cortes e a perna presa sangrava demais. Minha mãe e eu tentamos tirá-lo dali, mas os outros carros estavam se aproximando, dava para ouvir o barulho. Mas a gente não podia sair, não podia!
Finalmente a represa cedeu e as lágrimas começaram a correr de verdade. A voz de Sharon falhou e as pernas oscilaram um pouco, confiando o peso do corpo dela a mim, que a segurava. Achei que ela não conseguiria prosseguir daquele ponto e decidi terminar aquela tortura. Que ela brigasse comigo depois, se achasse devido, mas eu não suportava mais vê-la se esforçar para pôr para fora lembranças que a machucavam tanto.
— Pelo que me descreveram, a artéria femoral dele estava lesionada — expliquei no lugar dela. — A hemorragia era impossível de conter e ele teria morrido de qualquer jeito. Mas as duas não conseguiam deixá-lo.
— Ele tinha uma arma. Minha mãe tapou meus olhos quando entendeu. Mas eu ouvi. O grito dela. Eu ouvi tudo.
Sharon estava chorando muito agora. Logan tinha baixado os olhos e Flora tampava a boca com as mãos como se segurasse um grito.
Como homem do campo acostumado ao abate de animais, Seth, o pai de Sharon, sabia o que aquele ferimento significava. Então ele tinha entrado em desespero e tirado a própria vida para que ela e Maggie pudessem ganhar minutos preciosos e fugir sem se preocupar em deixá-lo para trás. E ele tinha conseguido. Aquela atitude salvou as duas. Mas tinha também transformado seus corações de uma forma perturbadoramente inegável que eu ainda me esforçava para entender em sua totalidade.
— Sinto profundamente por sua dor — David se aproximou e segurou uma das mãos de Sharon. Ela não se negou ao contato. Em vez disso, levantou o rosto enterrado em meu ombro e olhou para ele.
— É isso que eu quero dizer — pronunciou com a voz entrecortada. — Eu nunca achei que isso fosse possível — ela indicou as mãos juntas. — Na minha cabeça, as Almas destruíram minha família. Mas no meu coração, eu sei que não foi o senhor, ou Flora, ou Logan ou nenhuma outra. Sei que nenhum de vocês queria que isso acontecesse comigo.
— Não. De jeito nenhum! — Flora admitiu. — Eu faria qualquer coisa para evitar se pudesse.
— Eu sei. Agora eu sei. Não conheço você, mas conheço Logan e sei o que ele fez para salvar a vida do meu tio. Talvez um dia ele conte. E o que a esposa dele fez por um amigo e pela Alma que salvou minha prima. O que outras Almas que conhecemos fizeram e fazem. Eu nunca admiti isso — Sharon sorriu para Logan e ele retribuiu —, mas nunca conheci seres mais propensos à empatia e dispostos ao sacrifício. Levou tempo para que eu conseguisse acreditar que a linha entre inimigos e amigos não existia mais, mas eu entendi. Eles tiveram paciência de me esperar compreender e agora posso retribuir explicando aos outros também. Mesmo que leve tempo.
— Tempo — murmurou Flora. — Fico imaginando quantas feridas podíamos ter curado se tivéssemos pensado em tudo isso antes. Quanta fome podia ter sido saciada! É inadmissível que haja sofrimento em um mundo onde há fartura e boa vontade. Mas creio que boa vontade seja um processo que estabelece seus próprios prazos, não é?
— Creio que sim — Sharon sorriu de um jeito tristonho. — Mas às vezes só o que é preciso para dar o primeiro passo é conhecer quem está do lado oposto da estrada. É o único jeito de não termos medo. Ou ódio — completou. — A propósito, meu nome é Sharon Stryder Jones. E estou muito feliz em conhecer vocês. Também espero que não seja a última vez.
— Se é de sua vontade, Sharon Stryder Jones, e da sua, Doc, não será. Estamos cientes de que haverá percalços, tropeços e até mesmo perdas, porque nem todos compreenderão rapidamente — David declarou. — Contudo, não podemos mais admitir um mundo apartado dos humanos, não podemos nos conformar com seu sofrimento. Por isso vale a pena lutar. E daqui para frente, vocês têm mais do que aliados. Têm amigos. Podem nos considerar como os novos integrantes da sua grande família.
Nós sorrimos uns para os outros, esperançosos. E meus dedos finalmente secaram as lágrimas no rosto daquela mulher tão vulnerável quanto resiliente. Tão teimosa quando podia ser inteligente quando seus ideais mais profundos eram postos em xeque.
Por um tempo, continuamos conversando até o momento em que Lily e Jamie se juntaram a nós quando Logan os chamou pelo celular, para surpresa e agrado de David e Flora. Uma hora depois, sentados no chão de terra porque estávamos cansados, Jared e Brandt, desconfiados, mas dispostos, atenderam ao nosso chamado e vieram também. Quando a tarde se punha, concordamos que ainda havia muito a dizer e prometemos que voltaríamos.
De fato, aquela foi a primeira de muitas vezes.



[1] Expressão em latim que significa “sem a qual não pode ser”.

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