segunda-feira, 14 de maio de 2018

CD2 - Cap 28


Capítulo 28 – Um Pequeno Passo

There comes a time
When we hear a certain call
When the world must come together as one
There are people dying
Oh, and it's time to lend a hand to life
The greatest gift of all
(...)
We are the world
We are the children
We are the ones who make a brighter day, so let's start giving
There's a choice we're making
We're saving our own lives
It's true we'll make a better day, just you and me
(We Are the World – USA for Africa)

Logan

— Tempestade Solar, que prazer em revê-lo! — disse David ao se aproximar juntamente com Flora. — Como está sua linda menina?
Levantei-me da mesa da cafeteria onde os esperava e oscilei, sentindo uma breve tontura. Nós tínhamos decidido começar nosso “experimento de retirada” depois que eu me reaproximasse dos dois, porque achávamos que não convinha arriscar um despertar do humano antes que essa parte estivesse concluída, mas não pude esperar mais.
Quando naquele mesmo dia em que tomamos a decisão, entrei em contato com David e soube que ele estaria viajando pela semana seguinte, liguei para Cal e contei a ele toda verdade. Sem muitas perguntas, nosso amigo se prontificou a ajudar imediatamente e chegou na outra noite. Então demos início ao primeiro round da nossa loucura, cientes de que, se o humano acordasse, Estrela assumiria a conversa com David e Flora e daríamos um jeito a partir daí. Mas essa era apenas uma possibilidade remota, porque sabíamos o quanto seria complicado ele despertar.
Cinco dias não eram, nem de longe, o suficiente para que houvesse algum sinal daquele que podia ainda morar em mim. No entanto, tinham sido o bastante para que eu sentisse os efeitos negativos em meu corpo enfraquecido.
— Você está bem? — perguntou Flora, enquanto me cumprimentava com um beijo no rosto. — Está gelado!
David segurou minha mão e assentiu, parecendo preocupado. Fiz um gesto para que relaxassem e nos sentássemos. Eu só precisava de uma cadeira e, quem sabe, um café forte. Então tudo ficaria bem.
Honestamente, eu havia acreditado que uma única tentativa não me faria sentir tão mal, e achei que poderia estar em meu melhor para a conversa de hoje. Mas estávamos aqui agora e, apesar de meu ledo engano, eu não podia me dar ao luxo de lamentar por minha irresponsabilidade. Tinha que fazer funcionar assim mesmo.
— Está tudo bem — tranquilizei-os —, só não tomei meu desjejum ainda. Acho que preciso de um pouco de açúcar no sangue — menti. — Lindsay está ótima, David. Está no parque com a mãe, mas elas virão para cá mais tarde, para rever vocês. A pequena sente falta dos amigos.
— Nós também — Flora sorriu, amistosa. — Desculpe a pergunta, mas ela não estranha essa vida de viagens que vocês levam? Crianças precisam de estabilidade.
Certamente, essa não era a intenção de Flora, mas o comentário me fez sentir culpado. O que eu estava fazendo — qualquer parte de tudo isso — tinha o potencial de afetar cada pedacinho do mundo limitado, porém estável de Lindsay. Mas a longo prazo seria o melhor para todos. Principalmente para ela e John. Então tentei me recompor.
— Ela se diverte conhecendo pessoas novas e colecionando amigos que revê de tempos em tempos. Você sabe como as crianças têm uma mente aberta e são tão amorosas que fazem amigos por toda parte, não é?
— Pois é parte do que eu ainda tento provar aos Conselheiros — ela disse, chamando o garçom para anotar nossos pedidos. — Você tem feito falta para me ajudar.
— Realmente, sua perspicácia em conjunto com sua persistência nos traziam uma visão única das coisas. Por isso concordo que sentimos sua ausência. Pretende voltar às reuniões? — perguntou David.
— Em algum momento, sim. Mas queria conversar com vocês dois antes, já que temos opiniões parecidas. Quem sabe preparar uma abordagem diferente para um assunto que deixamos pendente.
— Que seria? — ele questionou intrigado, seus olhos puxados estreitando-se ainda mais.
Flora pareceu empolgada com a mera perspectiva de novos debates e eu me animei com essa disposição atenta dos dois. Esperei o garçom se afastar. O assunto era delicado, afinal. Mas eu sabia que tinha aliados naquela mesa.
— Bem, nós conversamos muito sobre os novos humanos, as crianças que estão sendo criadas por nós e, portanto, estão inseridas em nossa sociedade. Mas e se houver outras crianças? Digo, entre os sobreviventes. Devem ser poucos, mas sabemos que ainda pode haver alguns por aí. Essas crianças... Na verdade, os humanos que ainda restam... Eu me interesso em saber o que os Conselheiros e Representantes discutem sobre eles.
— Você sabe, Tempestade Solar. — David inclinou o rosto surpreso pelo questionamento.
De fato, eu sabia. As resoluções da Representação eram amplamente divulgadas em todas as mídias e essa, em especial, que era de interesse de todas as comunidades, era assunto frequente nos últimos meses. Além disso, todas as cidades mantinham atas detalhadas das reuniões de seus Conselhos disponíveis para qualquer cidadão e eu tinha lido as de Nova Orleans e Phoenix — mais perto de casa — onde havia menção a humanos. Contudo eu precisava ouvir deles. Filtrada por suas opiniões, eu teria uma melhor visão do que eles sentiam sobre esse assunto, e poderia medir melhor a recepção do que eu teria a lhes dizer.
— Sim, eu ouvi as notícias quando aconteceu. E também li as atas a respeito, mas me interesso em saber por vocês, se não se incomodarem, para formar uma opinião mais completa sobre o assunto e entender como vocês pensam, particularmente.
— Pois muito bem, amigo — David concordou pacientemente. — Não me incomoda em nada explicar como foi. Toda oportunidade de conversar com um amigo sobre assuntos importantes é bem-vinda, não é mesmo, querida Flora? — Ela assentiu com um sorriso e eu agradeci antes que ele continuasse. — Bem, é consenso entre todos os Conselhos e, portanto, entre os Escritórios de Buscadores do mundo que não os procuraremos mais, a não ser que alguma denúncia seja feita de que estejam ameaçando e oferecendo perigo a um de nós. Do contrário, os deixaremos sobreviver da maneira que puderem. Não temos interesse em uma guerra pura e simples.
— Exatamente — Flora confirma. — O objetivo nunca foi a extinção dos humanos, e sim a salvação do planeta para que pudéssemos habitá-lo. Infelizmente, nossa forma de sobrevivência e nosso modo de colonização exigia que ficássemos um contra o outro, porque precisávamos dos hospedeiros. Acontece que depois de todo esse tempo, eles se tornaram inviáveis para esse propósito, resistentes demais. Mas, claro, imagino que eles não saibam disso e ainda acreditem que estão lutando pela própria vida quando se deparam com um de nós, então reagem com violência. Contudo, se são deixados em paz, apenas saqueiam nossas provisões e voltam a se esconder. Assim, o argumento dos Buscadores foi que eles correriam riscos desnecessários indo atrás desses humanos. Para os Curandeiros também era um fardo pesado demais ter que... descartar os hospedeiros — ela disse hesitante, tocando no ponto mais delicado de todos.
— Entendo — concordei. — A noção que temos de quem eles são mudou depois de todo nosso tempo na Terra e, claro, da convivência com nossos filhos humanos. Tenho certeza de que muitos ainda temem os humanos que sobraram, imprevisíveis e violentos como sabemos que podem ser. Mas também imagino que seja muito difícil para alguém cuja vocação é curar simplesmente terminar uma existência.
— Sim, os dilemas éticos atingiram proporções novas com o passar do tempo — disse David.
 — Certamente. — Talvez o processo não fosse o mesmo para todas as Almas, mas mesmo a mais reticente não poderia ficar imune para sempre à presença humana, já que havia toda uma nova geração composta por crianças de famílias que não as entregariam como hospedeiras. Mas era sobre as condições daqueles que, assim como meus amigos, não estavam inseridos em nossa sociedade que eu precisava saber. Portanto, continuei o assunto. — Peço desculpas por insistir nos detalhes. É que são importantes para o que tenho a dizer e quando a determinação veio a público eu não fazia parte de um Conselho. Mas de quem partiu a iniciativa de pedir o término das buscas por sobreviventes, dos Buscadores ou dos Curandeiros?
— De ambas as partes, mas em momentos diferentes — David explicou. — Foram os Curandeiros quem primeiro perceberam a inviabilidade deles como hospedeiros, por causa da resistência à supressão que aumentava exponencialmente conforme o tempo passava. Os Confortadores os apoiaram nisso e os Conselhos apenas concordaram e tornaram conhecida a decisão para os Representantes. Em um instante, todos os demais Conselhos do mundo estavam de acordo com ela. Então os Buscadores levantaram a questão da própria segurança. Qual seria o objetivo de abordar humanos e correr riscos se não seriam usados como hospedeiros e os Curandeiros estavam cada vez mais se opondo a descartar os corpos?
— De fato, mas mesmo assim... É difícil imaginar um consenso entre os Buscadores a esse respeito. A missão deles é zelar pela segurança de nossa espécie. E os humanos, por menor número em que estejam, ainda podem oferecer perigo às Almas que se depararem com um deles.
Eu sabia que estava bancando o advogado do diabo. Mas o fato era que nenhum dos humanos que eu conhecia podia responder por todos os humanos do mundo. O perigo do contato era uma probabilidade que sempre existiria e eu já tinha aceitado que precisaríamos lidar com isso, porque minha família humana era mais importante que um risco hipotético. Entretanto eu conhecia o pensamento dos Buscadores.
— Sei que nossos protetores trabalham com conhecimento e prevenção bem mais do que com confronto direto — continuei. — Portanto prefeririam ter ciência dos esconderijos e locais onde humanos já foram avistados, para vigiar e evitar que outras Almas desavisadas topassem com eles, em vez de atacar esses redutos e simplesmente dizimar os sobreviventes. Ou seja, parafraseando o clichê: o melhor ataque é a defesa. Isso já era assim antes da resolução. Mas eu me pergunto se há Buscadores que preferem uma abordagem mais direta... Digo, para eliminar de vez os riscos.
Meus dois amigos arregalaram os olhos, entendendo ao mesmo tempo aonde eu queria chegar.
— Você está me perguntando se pode haver Buscadores que prefiram caçar os humanos a evitá-los? — David testou e eu confirmei. — Provavelmente. Se eles desobedeceriam uma decisão geral pelo bem maior e empreenderiam uma caçada por conta própria? Isso eu já acho que não. Vai contra a nossa natureza, para começar. A insubordinação entre nós é praticamente inexistente, para não dizer irracional, nesse caso.
— É o que penso — Flora completou. — Se um humano for capturado não há uma prisão para onde levá-lo e os Curandeiros se recusariam a descartar seu corpo. Então os próprios Buscadores precisariam lidar com ele. E por lidar... Bom, você entende o que quero dizer. Por isso acho que os dissidentes não levariam a insubordinação adiante, porque isso seria muito pior. Hoje em dia, praticamente não existem mais armas letais, mas mesmo que houvesse, nunca ouvi falar de uma Alma disposta a assassinato a sangue frio.
Minha cabeça girou outra vez, mas eu não sabia se era por causa dos sintomas que eu estava vivenciando ou se era pelas imagens que rodavam em minha mente.
Sobre um garoto que eu não tinha conhecido e sua namorada que havia se tornado uma de minhas melhores amigas. E sobre o papel de uma certa Buscadora em suas vidas.
Eu concordava com Flora. Tinha conhecido Buscadores suficientes em minhas existências e eu próprio, mesmo em meus piores dias, não teria sido capaz de agir como um executor. Mas eu sabia de pelo menos uma Alma que tinha sido.
Por mais que eu quisesse acreditar que a natureza pacífica de minha espécie prevaleceria a tudo, o assassinato do namorado de Lily não me deixava ilusões de que as coisas não poderiam terminar muito mal.
Por outro lado, aquela foi uma situação ímpar, porque a Buscadora tinha sido levada ao limite por Lacey.
Eu acreditava — e Estrela concordava comigo — que a humana era quem dava as cartas. E o caráter pestilento dela contaminou a Alma cuja grande falha tinha sido esconder de todos, provavelmente por orgulho, a hospedeira resistente que lhe dominou as ações.
Obviamente, eu não sabia qual das duas tinha puxado o gatilho. Também evitava pensar nisso, porque a menos que Lacey se comportasse de forma perigosa para os outros, seria uma temeridade levantar essas suspeitas. Mas a verdade era que, afora seus comentários ácidos e sua personalidade insuportável, ela era apenas uma megera inofensiva, que nunca tinha prejudicado ninguém.
Além disso, eu podia apenas imaginar o quanto tinha sido difícil para ambas dividir o mesmo corpo por tanto tempo!
Uma humana amarga, mimada e sem empatia. Uma Alma obstinada e orgulhosa. Atacando-se mutuamente dia e noite. Por dois longos anos.
A loucura tinha sido inevitável.
Talvez em seu normal, Lacey nunca teria sido capaz de apontar aquela arma para Wes. E sem sua influência, a Buscadora não teria feito o que fez. Mas juntas elas tinham trazido à tona o pior uma da outra.
De qualquer forma, essas eram apenas suposições. O que me restava era estar continuamente de olho em Lacey e cuidar para que nenhuma hostilidade fosse cultivada, assim como Jeb vinha fazendo desde sempre.
Era um risco que eu tinha assumido quando percebi o tipo de pessoa duvidosa que ela era. E que Jeb e todos os outros tinham aceitado quando a acolheram. Porque arriscar-se era inevitável em todo esse jogo.
Sempre haveria riscos. A questão era o quão dispostos estávamos a encará-los.
Eu queria poder debater a questão com David e Flora, mas ainda não sabia o quanto podia confiar neles e aquela história revelava muito sobre nosso grupo.
As circunstâncias em que Peg se envolveu com os humanos. A perseguição obsessiva de uma Buscadora posteriormente dada como morta por seus companheiros. E a maneira que Peg encontrou de salvar sua vida, retirando-a de sua hospedeira e entregando aos humanos nosso único segredo.
Não, definitivamente não era hora de falar sobre isso.
De todo jeito, depois de todo esse tempo, seria impossível uma Alma conviver com um hospedeiro resistente como Mel ou Lacey. A supressão era inevitável quando a Alma era mais forte. E a loucura impossível de esconder se o humano vencesse a batalha.
— Eu ainda temo o contato entre humanos e Buscadores — confessei. — Conheço as ordens no caso de denúncia de perturbação da ordem. Evitar o engajamento em disputas físicas. Paralisar com o spray ou, em casos extremos, com a munição especial. Retirar as Almas ameaçadas e evacuar as cercanias até que o humano tenha fugido. Parece bastante sensato para mim, mas...
— Não o suficiente — Flora completou. — A parte sobre deixá-los à própria sorte também incomoda você, não é?
— Um ferimento com munição de paralisium pode não ser letal, mas é doloroso o bastante. E pode ser grave também. Sem tratamento adequado, pode demorar muito a sarar — exemplifiquei.
— Eu já soube de casos em que os Buscadores levaram um humano ferido e desacordado aos Curandeiros. Depois o deixaram curado e em local seguro até que despertasse sozinho. Ou seja, todos temos medo, mas muitos estão procurando maneiras — David tentou me tranquilizar.
— Pois é onde eu queria chegar — elucidei finalmente. — Quando um humano é deixado à própria sorte, como disse Flora, para que tipo de situação ele volta? Será que suas crianças passam fome? Ou morrem por falta de tratamento a alguma doença banal que curaríamos em poucos segundos? — Noto que Flora ofega e os olhos de David se nublam ao imaginar a cena. — Eles estão por aí, são parte de um mundo pelo qual assumimos responsabilidade, mas não nos responsabilizamos por eles. Todos os seres deste planeta vivem em harmonia agora, sem sofrimento. Exceto pelos remanescentes da espécie que nos serviu como hospedeiros. E eu não consigo mais me conformar com isso. Há necessidades por parte deles e inúmeras possibilidades de ajudar por parte da nossa. Só o que nos separa é o medo que temos um do outro.
— E o fato de que nos odeiam — Flora ponderou.
— Mas não precisam odiar. Podemos ao menos tentar. É nossa obrigação assumir responsabilidade por seu bem-estar também. O medo não pode ser suficiente para nos impedir, porque nunca tivemos medo de nos sacrificar pelo bem maior. Pois agora os humanos também fazem parte disso. Afinal, as crianças deles herdarão o mundo junto com as nossas. Porque nada as impede, quando forem adultas, de se confundirem com aqueles que foram criados por nós e educados segundo os nossos valores. E se essa situação se tornar conflituosa, só teremos a nós mesmos para culpar.
David ouvia pacientemente, sem interferir. De repente, ele me olhou e eu soube que estas questões não eram estranhas para ele. Ele concordava. Talvez já tivesse ponderado sobre todas elas. E eu esperava que não tivesse sido apenas ele.
— Suas preocupações ecoam as de muitos de nós, Tempestade Solar. Dos Representantes e de muitas Almas que nos têm abordado ao longo dos anos — ele esclareceu. — Mas estamos diante do mesmo impasse que todos os indivíduos que já tentaram fazer o bem na Terra enfrentaram. Confiança. É preciso haver confiança mútua e irrestrita entre as partes para fazer algo assim funcionar. Não podemos impor isso, ao menos não de uma vez, a todas as Almas, porque não podemos forçá-las a confiar nos humanos. O bem está em nossa natureza, mas tudo o que está vivo espera assim permanecer e muitos humanos nos matariam se tivessem a chance.
— E nós estivemos nos protegendo contra isso, mas assim como no caso dos Buscadores, pode não ser o bastante. Talvez seja uma questão de mudança de abordagem. De tentarmos fazer com que confiem em nós.
— Talvez — Flora respondeu pensativa. — Mas não imagino como poderíamos fazer isso em larga escala.
— Mas eu sei por onde ao menos podemos começar, se vocês estiverem dispostos. E se confiarem em mim de que não há perigo.
— Pois claro que estamos dispostos, caríssimo — disse David. — Sempre confiamos em você.
— Então eu gostaria de apresentá-los a alguns amigos — sugeri.
Os dois assentiram e um arrepio de antecipação percorreu minha coluna, instalando a expectativa dos dias que ainda viriam.
A semente estava lançada. O primeiro passo de uma jornada que prometia ser longa.
Talvez houvesse outros mais difíceis, mas este ao menos já estava dado. E eu mal podia esperar pelo próximo.




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