Capítulo 34 – Através do Vidro
How
do you feel? That is the question
But I forget, you don't expect an easy answer
When something like a soul becomes initialized
And folded up like paper dolls and little notes
You can't expect a bit of hope
And while you're outside looking in
Describing what you see
Remember what you're staring at is me
But I forget, you don't expect an easy answer
When something like a soul becomes initialized
And folded up like paper dolls and little notes
You can't expect a bit of hope
And while you're outside looking in
Describing what you see
Remember what you're staring at is me
'Cause I'm looking at you through the glass
Don't know how much time has passed
All I know is that it feels like forever
When no one ever tells you that forever feels like home
Sitting all alone inside your head
Don't know how much time has passed
All I know is that it feels like forever
When no one ever tells you that forever feels like home
Sitting all alone inside your head
Logan
— Eles te pediram
pra fazer isso, não foi? — perguntou Kyle, sem me esperar falar.
— Era óbvio que
eles iam impor algum tipo de condição. Não faria sentido se não impusessem.
Caso contrário seríamos uma ameaça, todos nós! — opinou Magnólia.
— Na verdade, tudo
o que David deixou explícito como condição seria a entrega de todas as nossas
armas — Lily esclareceu. — Tudo o que possuem agora são armas não-letais. E não
podem correr o risco de humanos circulando entre eles com armas de fogo.
— Vai ser muito
difícil alguém confiar neles o bastante para viver desarmado. Pelo menos no
começo — disse Andy.
— Bem, a ideia é
trocar nossas armas pelas deles até nos convencermos de que nada disso será
necessário e decidirmos por nós mesmos — Jared interviu. — Mas quanto ao que
Peg nos ensinou a fazer, eles ainda não sabem que podemos retirar uma Alma do
hospedeiro.
— Eles não me pediram
para fazer nada — aproveitei a deixa para retrucar a pergunta inicial de Kyle. —
Mas alguém precisava ter feito, de qualquer maneira.
— Certo, certo.
Isso é uma coisa que não ia passar batido mesmo. Nós não contamos nada, mas
nesse tempo todo que vocês passaram por lá acho que precisaram contar, né? E o
que foi que eles disseram, hein? Ficaram muito bravos? — questionou Jamie.
— Eu não contei
nada ainda. Essa é a história de Peregrina e Melanie, são elas que devem
decidir quando e para quem contar.
— Obrigada, Logan.
Eu aprecio isso. Mas não há relutância de nossa parte quanto a dizer a verdade
a Flora e David — disse Peg, sob a concordância de Mel. — Temos que ser sinceros
com nossos aliados. E apesar de imaginar que as Almas não gostariam que os
humanos soubessem dessa possibilidade, não acredito que seja possível guardar
segredo. Os humanos das células que conhecemos já sabem de nossa história. E é
uma coisa fundamental demais para ser ocultada. Nenhuma Alma pode acreditar em
uma nova sociedade harmônica que se baseie em mentiras e omissões. Além disso,
talvez muitos tentassem de qualquer jeito, como vocês faziam aqui antes, se é
que já não tentam.
Ian segurou a mão
de Peg e a levou aos lábios no momento em que ela trouxe à tona as experiências
malsucedidas de Doc no passado. Ela não falava sobre isso, ninguém falava. Mas
um dia Ian me contou sobre a tristeza que assolou Peregrina quando flagrou os
humanos com sangue de nossos irmãos em suas mãos. Por isso, apesar de os olhos
de minha amiga permanecerem resolutos, eu notava a sombra ali, e apreciei
quando Ian passou o braço ao redor dos ombros dela.
— Nós achamos que
há outros aculturados — ele especulou. — Vocês todos são prova de que as
emoções dos hospedeiros são fortes o bastante para influenciar a própria
constituição da identidade de uma Alma na Terra. Então, assim como nós não
somos os únicos remanescentes no mundo, vocês e Cal não devem ser os únicos
também, concorda?
— Sim, concordo. E
isso possivelmente significa que o que aconteceu com Peregrina e Melanie...
— Não aconteceu
apenas aqui — Ian completou. — O segredo não faz sentido. Do ponto de vista dos
humanos remanescentes que ainda não souberem dele, só seria mais uma traição
para dificultar a confiança nas Almas.
— Foi por isso que
você fez essa loucura — concluiu Sunny, algo desgostosa. — Mas, Logan, isso me
deixou doente e fraca. Anos atrás! Agora deve ter sido muito pior pra você, com
todo o tempo que já passou nesse corpo. Eu entendo o que vocês estavam tentando
provar, mas deviam saber que era um risco grande demais. E se o corpo não
aguentasse a retirada? E se...?
— Foi preciso,
irmã. Sei que você está assustada com o que podia ter acontecido, mas entende
tão bem quanto nós que era preciso. Estrela estava comigo. E Cal também, para
ajudá-la a me monitorar. Quando vocês tentaram aqui, não tinham recurso nenhum,
mas nós procuramos fazer da forma mais segura possível.
— Sei. E o que isso
significa, afinal? — Kyle questionou, a mão subindo e descendo nas costas de
Sunny, a boca fixa numa linha reta enquanto eu percebia seu maxilar se
apertando.
— Nós fizemos
retiradas sucessivas — esclareceu Estrela. — Porque sabíamos que o corpo não
sobreviveria sem a Alma tempo o suficiente para o humano ter uma chance de
acordar. Não sabemos explicar a razão, não há nada científico que justifique,
mas uma retirada não é a mesma coisa que, digamos, um coma induzido. Eu me
informei a respeito e havia dados sobre a perda de hospedeiros criogenizados.
Nós temos a tecnologia para conservar o corpo intacto, mas se a consciência do
humano tiver sido suprimida, sem a Alma, as células começam a morrer apesar
disso. Sem a criogenia, os riscos se agravam e o processo se acelera.
Obviamente, não podíamos manter Logan congelado, perderia o propósito. O
cérebro dele precisava estar em pleno funcionamento para o humano ter alguma
chance. Então mantivemos o corpo em coma por quanto tempo estivesse estável e
seguro, o que não podia passar muito de cinco dias a cada vez. Eu registrei
tudo, obtive amostras e posso provar a qualquer um que depois disso os minerais
começam a parar de ser produzidos e as células se desestabilizam. Há meios de
desacelerar esse processo com medicamentos, mas se os neurônios morrerem, por
exemplo, não se pode recuperá-los. Então esse era nosso grande medo. Por isso
não esperávamos os sinais óbvios, como os órgãos começarem a falhar, o
enfraquecimento do coração, porque isso tornaria o quadro muito grave para ser
revertido com sucesso. Logan era inserido de volta e ficava cerca de três ou
quatro dias se fortalecendo, deixando sua marca psíquica... Desculpem, só
consigo interpretar assim, embora pareça estranho — Ela sorriu sem humor. — Mas
aí só então tentávamos de novo, esperando que a marca “enfraquecida” da
consciência de Logan deixasse espaço para a do humano, contudo nada acontecia.
Exceto que cada vez os despertares eram mais complicados. Ele demorava mais
para acordar e precisávamos reforçar as doses dos medicamentos que o ajudavam a
se restabelecer. Por isso, na quinta vez, felizmente, Cal conseguiu convencê-lo
a parar.
— Isso foi uma
loucura, meninos — disse Trudy, indignada. — Eu estava lá quando Sunny tentou.
Os pulmões dela ficaram fracos, os músculos também. Isso porque só foram uns
poucos dias...
— Mas nós tínhamos
as condições apropriadas. Se houvesse problemas respiratórios, poderíamos
entubá-lo rapidamente, por exemplo. Para a musculatura tínhamos fortificantes,
vitaminas para o sistema digestivo... Algumas vezes quando acordava ele
vomitava e ficava indisposto por algumas horas, mas também tínhamos recursos
para regularizar o apetite e a digestão em pouco tempo.
Eu observava
Estrela descrevendo tudo como se fosse um experimento, no tom distanciado e sem
emoção que tinha se acostumado a usar quando tratava desse assunto, e admirava
essa capacidade dela.
Estrela era
admirável.
Com essa missão
dolorosa, eu a tinha obrigado a se compartimentar, a agir como cientista e
Curandeira. Mas agora, enquanto contávamos a nossos amigos aquilo que
precisavam saber, eu me dava conta de que seu coração sensível tinha, como
sempre, entendido a verdade bem antes do meu.
Começou como um
propósito, de certa forma, individual. Algo que estávamos fazendo por Jeb. E
por mim. Mas era mais do que isso. Precisava ser feito com toda a força e
plenitude de quem nós éramos, porque tínhamos todos que saber. Então não era só
a Estrela Curandeira quem falava.
Era toda sua
piedade, toda sua devoção, toda sua paciência. E sondando as expressões dos
meus amigos, eu percebia que eles entendiam isso também.
Era de se duvidar
que todos os humanos remanescentes, aqueles que não conhecíamos ainda, acreditassem
em nós. Contudo, conhecimento era a chave, sempre fora. O que quer que fizessem
com a informação, humanos e Almas mereciam conhecer os limites. E as
consequências.
— Logan podia ter
morrido? É isso o que você está dizendo? E Sunny também, quando tentamos
naquela época? — Geoffrey, ao lado de uma Trudy preocupada, questionou.
— Eu sinto muito. —
Estrela inclinou a cabeça. — Os Representantes têm poucas condições a impor: a entrega
de todas as armas letais e o respeito ao livre arbítrio das Almas sobre os
corpos que ocupamos. Sem isso, nossa espécie não poderia sobreviver aqui. E é
interesse de muitos permanecer enquanto se constrói uma nova sociedade. Para
ajudar. Isso quer dizer que vocês são livres para tentar encontrar seus entes
queridos, mas não poderão forçar as Almas que estão em seus corpos a uma
retirada. Contudo, se conseguirem convencê-los em audiência pública, para todos
serem testemunhas de que não houve coação, a retirada será feita com todos os
recursos necessários. Mas vocês precisam saber que podem matar os hospedeiros
no processo.
— Do jeito que você
está falando... — Jared arguiu, parecendo inquieto. — Vocês já revelaram a
experiência de Logan a eles?
— Não particularmente
— Estrela continuou. — Mas eu levantei o questionamento em uma reunião a que
compareci. Eles já vinham contemplando a questão hipoteticamente. Ainda não
fizeram testes, mas os cientistas já imaginam o que pode acontecer. Vocês
precisam entender a posição deles de proteger os seus. A integração entre
espécies não pode ser feita de forma a nos colocar em risco, de qualquer
maneira.
— Que merda —
escutei alguém dizer.
— Sinto muito —
respondi. — Talvez vocês não acreditem. Às vezes eu mesmo custo a admitir,
porque, claro, seria difícil para mim se o humano acordasse. Não há corpos
disponíveis e eu não sei quanto tempo levaria para voltar para vocês, ou com
que história voltaria... Mesmo assim, queria ter notícias melhores.
Nesse ponto, fiz
uma coisa que tinha evitado até então. Olhei para Jeb, dirigindo outra vez
minhas desculpas a ele.
Meu pai... Meu! Eu continuava dilacerado entre a
satisfação de poder dizer isso e a vergonha. Mas ele me devolveu um olhar
sereno. Amoroso.
Por certo que havia
dor ali, mas não era o que importava.
Jeb. Estrela. Eu.
Nós éramos mais do que dor. Mais do que a “frieza” de dizer ou fazer o que
fosse preciso. Nós éramos seres completos. Nós éramos uma história. E uma que
podíamos tornar em um final feliz. Havia amor suficiente para isso.
— Que merda, Logan.
Seu otário! — Era Kyle desta vez. E, assim como ele, muitos pareciam me dirigir
uma espécie de carranca.
— Você é parte da
nossa família agora — disse Mel, como se adivinhasse minha confusão sobre o
motivo de quase todos parecerem tão bravos. — Não gostamos de saber que você se
colocou em perigo.
— E sem nos dizer
nada — Kyle de novo.
— Nós não queríamos
preocupar ninguém — argumentei, o que era verdade também.
— Conversa fiada.
Você não queria era correr o risco de a gente tentar te impedir. Acha que não
aprendemos nada com o que houve com Sunny?
— O que eu sei é o que
você mesmo já me disse, Kyle. Mais de uma vez. Que já pensou em procurar seu
pai. Só nunca fez isso porque Ian te convenceu de que, se não desse certo a
retirada, a Alma poderia se tornar hostil e comprometer nosso esconderijo. Pois
bem, agora não precisaremos mais de um esconderijo.
Eu sabia que tinha
jogado baixo, mas da mesma forma que Kyle tinha apontado a faceta pouco nobre
de meu propósito inicial, ele sabia que eu também não deixava de ter razão.
— Ora, Jared estava
agora mesmo falando que se sentia tentado também — reforcei. — Todos vocês se
sentirão. E quanto aos outros humanos que nem conhecemos? Que nunca conviveram
com Almas e não têm motivo algum para respeitar nossa existência?
— Acho que esses,
de qualquer jeito, não vão se comover com o fato de você quase ter morrido
tentando — Kyle rebateu.
— Exato, porque eu não teria morrido e você sabe. Mas
eles precisam saber que o corpo, sim, pode morrer.
— É o mesmo, Logan.
Se a consciência da pessoa se foi, dá no mesmo pra eles arriscar o corpo se não
se importarem com a Alma. E muitos vão achar que vale o risco, pela mera
possibilidade de ter um parente ou amigo de volta, de dar a outro humano a
chance, mesmo que remota — disse Jared.
— Ao menos todos
devem saber quais são esses riscos, para além das suposições — respondi.
— Cara, essa
discussão é muito inútil — Jamie se manifestou, e todos voltaram os olhares
surpresos para ele. — O quê? Vão me dizer que tem sentido tudo isso?
Kate o puxou para
si, encostando o nariz na bochecha dele, como se pedisse paciência, mas Jamie
parecia determinado a provar seu ponto, qualquer que fosse. Provavelmente, eles
já deviam ter debatido isso dezenas de vezes. Afinal, junto com Isaiah e
Liberdade, tinham crescido neste mundo que habitávamos agora.
De repente, me
senti um grande tolo por não os escutar com mais frequência.
— O que quer dizer,
Jamie? — perguntei.
— Que eu já perdi
meus pais e todos os meus amigos de uma única vez. E foi horrível de um jeito
que nem dá pra contar. E se alguém me dissesse “ei, cara, quer arriscar isso de
novo, só que dessa vez um por um?”, eu não sei se dava um soco na pessoa ou
internava. Porque é óbvio que conhecendo as possibilidades, parece a maior
burrice do mundo passar por isso só por tentar. Mas aí eu olho pra Mel e lembro
que ela só está aqui por causa do que a Peg e o Doc fizeram. Então, se depois
disso a mesma pessoa me perguntar se eu arriscaria sofrer pela chance de ter
meu pai ou minha mãe de volta, eu ia responder que sim, claro! Por isso estou
dizendo que tudo depende do jeito como a gente olha. E só vamos saber isso
quando estivermos frente a frente com as Almas nos corpos que amamos. Só que eu
nunca ia querer que Peg sofresse. Nem Kyle quis que Sunny sofresse. Nem Ian
quis isso para Estrela ou qualquer um de nós para você, Logan. Daí tem isso
também. Não dá pra gente ficar aqui discutindo o que faríamos, porque as Almas
não são vitrines com as nossas famílias dentro. São pessoas. E enquanto a gente
não se encontrar com elas não dá pra saber.
Pessoas. A palavra
ressoou entre nós.
Sim. Como sempre,
Jamie tinha razão. Nós éramos pessoas.
Mel e Peg se
aproximaram de uma única vez de Jamie. A sequência de imagens foi bonita.
Primeiro Kate se afastou ligeiramente e se juntou à mãe, logo atrás. Depois
Melanie estendeu a mão para tocar o rosto dele. Por fim, Jamie olhou para
Peregrina, como se a chamasse, e ela se aninhou em um abraço entre os irmãos
Stryder.
Ao redor, pequenas
e constrangidas manifestações de afeto se espalharam entre os demais também.
Por minha vez, passei meus braços pelos ombros de Estrela e ela apoiou a cabeça
em mim, deixando um pouco do peso dos dias anteriores para trás.
Olhei para Jeb e
sorri. Ele respondeu com aquele olhar insondável que sempre me dizia todo tipo
de coisas que eu mal podia decifrar, depois me devolveu um sorriso cúmplice.
— Bem, teremos uma
chance, não é? — disse Kate. — Uma chance pequenininha e um monte de
obstáculos. Mas pelo menos, na pior das hipóteses, talvez seja legal conhecer
as versões Almas dos nossos parentes. Acho que meu avô nem deve ter mudado
tanto assim. Ele já era tão bonzinho!
Rachel, a mãe de
Kate, sorriu. Os olhos começando a marejar.
Pessoas. Todos nós.
Nem sempre eu
consegui entendê-las, mas sabia que amava cada uma das que estavam ali.
— Já minha mãe deve
ser bem diferente. A mulher era osso duro de roer — soltou Lily numa careta
divertida.
— Uou, que
franqueza! — Brandt riu.
— Ué, normal! Nem
todo mundo nasceu para este mundo das Almas — ela rebateu, rindo também, o
olhar meio terno e meio saudoso perdido em lembranças. — Minha mãe acharia um
tédio ficar sem motivos para brigar com as amigas, com meus professores, com os
clientes dela... Quer dizer, ela era boa pessoa, mas não levava desaforo para
casa.
— Como Jodi — Sunny
contribuiu e Kyle assentiu com a cabeça, sorrindo e acariciando o cabelo dela,
dando a impressão de que falavam sempre sobre isso. E que, não tão
estranhamente, depois de tudo, não era mais um problema.
— Mas meu pai daria
uma boa Alma — ele disse.
— Ah, que isso! —
Ian protestou. — Nosso pai sabia ser sangue quente quando queria.
— Sabia, sim. Mas
só quando era preciso. E a gente merecia, mano. Lembra quando quebramos a
vidraça do vizinho com a bola de basquete?
Os dois gargalharam
juntos. E o clima se fez inusitadamente leve. De repente, era como se
olhássemos álbuns de fotografia.
— A bola meio que
ricocheteou lá dentro — contou Ian —, e o susto quase matou a velha mãe do
senhor... Como era mesmo o nome dele?
— Morrison, lembra?
Nós tivemos que pedir desculpas e oferecer o que o pai chamou de “vale
vitalício de serviços gerais”. Cortar grama, trocar lâmpadas, desentupir ralos,
pintar paredes... E o homem se aproveitou bem. Chamava um de nós até para
abanar o cheiro dos peidos do cachorro — Kyle completou, como não podia deixar
de ser, com alguma de suas piadinhas escatológicas.
— Não podemos
reclamar. A gente não tinha dinheiro pra pagar o estrago e o vizinho foi legal
entendendo isso. E nós realmente quase matamos a velhinha. Não sei como o pai
conseguiu que eles nos desculpassem.
— Ele era bom
nisso. Não falava muito, mas quando falava dava pra confiar em cada palavra que
dizia. Todo mundo levava o Paddy a sério.
— É... — respondeu
Ian, pensativo, os olhos em outra época. — Acho que ele sentiu nossa falta. A
Alma, quero dizer.
— Não acho que
minha tia sentiu minha falta — disse Brandt. — Eu fui criado por ela, mas não
tínhamos uma boa relação. Não sei quais lembranças sobraram para a Alma, mas
talvez ela prefira outra família, como eu prefiro vocês.
O canto da boca de
Brandt se curvou um pouco, num sorriso constrangido que ele quase tentou
evitar. Mas então Rachel, sua companheira, deitou a cabeça em seu ombro e Kate
se virou para ele, sorrindo abertamente. Então ele sorriu também, e as pessoas
à volta o acompanharam.
— Temos uma boa
família — Mel murmurou. — As circunstâncias são estranhas, mas o resultado foi muito
bom.
— Pelo menos alguns
aqui cozinham melhor que meu pai — divertiu-se Jared. — Meus irmãos e eu
tínhamos que fingir que não ligávamos para a carne tostada demais ou para a
falta de sal no resto das coisas, porque ele gostava de cozinhar. Quero ver
como devem estar se saindo as novas versões dos meus irmãos agora, já que Almas
não costumam mentir.
Nós rimos.
Aquela era uma
conversa estranha. Havia todo um mundo de palavras e histórias inarticuladas
pairando entre nós. Mas eu simplesmente não conseguia sentir que não fosse
natural. Que não fosse familiar.
— Desculpem, deve
ser esquisito para vocês nos ouvir falar assim sobre as Almas — disse Lily.
— De forma alguma —
Peg amenizou com seu jeito doce de sempre. — Acho que, de certa maneira, isso
me faz mais bem do que todas as conversas que já tivemos sobre o passado.
— De certa maneira,
acho que para todo mundo — respondeu Lily. — Porque é estranho, sabe? Acho que
a gente sempre viveu com a ideia fantasma de que se tivéssemos a chance de
rever alguém que amamos, mas não fizéssemos nada, se não cometêssemos a
violência de tentar retirar a Alma dali, estaríamos escolhendo a Alma e traindo
o humano. Mas agora, de algum jeito, esse peso se foi. E, como disseram, nós já
vivemos o luto por anos! Acho que podemos todos tentar deixar a culpa e o
sofrimento para trás.
— Você tem toda
razão, Lily — Jeb se pronunciou. — No geral, não tenho dificuldades de dizer o
que penso, mas confesso que não conseguiria expressar tudo de um jeito melhor
do que você acabou de fazer.
Lily sorriu,
lisonjeada, e as pessoas concordaram. Até mesmo Lacey, que se manteve quieta
desde que caímos nesse tópico, pareceu pensar a respeito e encontrar mérito no
raciocínio de sua principal opositora.
— Talvez agora estejamos
livres para apreciar as Almas pelo que são — continuou Jeb, olhando diretamente
para mim.
Nossa conversa
vinha sendo silenciosa até ali, mas de repente ele pareceu perder um pouco a
paciência com esses meandros, como se estivesse determinado a externar as
coisas. Seu jeito de me dizer que havia chegado a hora de contar aos outros
sobre nós.
Quanto a mim, ainda
não me sentia pronto, mas concordava. Aquilo tudo ainda não parecia ser sobre
mim, no entanto eu precisava deixar que fosse. Mesmo que talvez eu pudesse me
dar ao luxo de deixá-lo conduzir tudo.
— E como nós somos?
— questionei, porque eu queria entender.
Finalmente, estava
começando a compreender a natureza do sentimento que tornava nossa conversa um
tipo de bálsamo insólito. Tratava-se da sensação visceral de alívio. Da dádiva antes
apenas branda de saber que eles não nos odiavam e que isso não mudaria. Mas não
era a mesma coisa de entender por que eles nos amavam. Por que Jeb me amava.
— Melhores — ele
afirmou. — E por isso talvez façam aflorar o que há de melhor em cada pessoa,
de tal jeito que os defeitos não encontram mais terreno fértil e desaparecem,
mas a essência original, a parte boa dela, permanece.
— Nós não somos
versões melhoradas dos humanos, Jeb — disse eu, rejeitando a ideia. — Também
não somos perfeitos.
— Eu não disse que
vocês não tinham seus próprios traços, mas eles se fundem com as melhores
partes do que já existia. E o que vocês chamam de defeitos, privados da nossa
malícia, se tornam meras e suportáveis idiossincrasias.
— Eu sempre gostei
dessa ideia, você sabe. Sempre quis acreditar nessa sua versão generosa. Mas...
você não o conheceu. E não me conheceu antes — objetei.
Eu não queria que
ele pensasse que eu era melhor. A obstinação de Jeb nesse sentido apenas nos
faria mal.
— Eu não sou um
substituto dele — completei. — Nem ousaria.
— Eu sei que é isso
que te atormenta, filho. Mas não é isso que eu espero. Jamie colocou bem quando
disse que nós já perdemos nossos entes queridos. E não devemos olhar para vocês
como se procurássemos o que tem “do outro lado”. Toda essa conversa
engraçadinha sobre nossos parentes pode ter te dado essa ideia, mas eu não vou
fazer isso.
A expressão dele
era veemente, certa, confiável. Não havia um único indício de dúvida no amor
contido nas palavras que dizia. E mesmo assim, eu continuava não estando
preparado para elas.
— A única coisa que
posso conhecer é o que você conta, concorda? E nada nunca me decepcionou — ele
continuou, como se adivinhasse minha relutância. E talvez adivinhasse mesmo.
Jeb me conhecia bem.
— Espera aí — Kyle
se meteu. — O que foi que a gente perdeu?
Olhei para os lados
e percebi as expressões confusas. Tinha começado como outra conversa simples
dentro de uma maior. E de repente era apenas mais uma discussão entre mim e
Jeb.
— Nada, não
perderam nada — tentei disfarçar. Eu ainda não estava pronto. Simplesmente não
estava pronto.
— Você se lembra da
Norah? — Jeb perguntou a Magnólia.
— Aquela perdida
que você namorava 900 anos atrás?
— Trinta e três
anos atrás. Precisamente quando ela sumiu.
— Jeb — alertei.
— Já chega, Logan.
É tempo demais.
Torci os lábios em
desgosto, mas eu não conseguiria pará-lo. Não era justo também. Porque a
história não era só minha. E aquela era nossa família, eles precisavam saber.
Respirei fundo e
assenti. Estrela me abraçou e sussurrou calma em meu ouvido.
— O que tem ela? —
Maggie perguntou.
— Você não acha que
os olhos de Logan são iguais aos da nossa mãe?
Aquele era o jeito
peculiar como Jeb e Maggie se comunicavam, como se partes inteiras do diálogo
se passassem apenas na cabeça de um deles, mas o outro entendesse. E assim, do
nada, Magnólia uniu as peças.
— Você está louco,
Jebediah! — ela disse, olhando de mim para ele. — Homem, você está ficando
senil...
— O que foi, mãe? —
Sharon questionou, mas Maggie a ignorou.
Com os olhos presos
apenas em mim, ela agora me analisava fixamente, embora suas palavras
descartassem a possibilidade.
— Você nunca o
ouviu cantar? — Jeb insistiu. — A voz do nosso pai. O maxilar do Trevor. A boa
e velha teimosia dos Stryder. E os olhos, Magnólia. Não é possível que você não
se lembre.
Maggie empalideceu.
Depois balançou a cabeça, tentando se apegar à incredulidade.
— Jeb... — ela
resmungou, mas não disse mais nada.
Dava para ver a
luta dentro dela e isso era fácil de compreender. Não fazia sentido.
Eu podia sentir o
peso de todos os olhares sobre nós, mas não conseguia desviar meus próprios
olhos do rosto de Jeb.
Ele estava
sorrindo. Como se sentisse orgulho.
Kyle limpou a
garganta. O ruído deliberadamente alto chamando atenção para si.
— Nós ainda estamos
aqui.
— É, e não estamos
entendendo nada — disse Melanie, mas assim como Maggie ela parecia ter unido
pontos que não julgava possíveis de se conectarem.
— Bem, como muitos
de vocês podem supor, eu não passei a vida sozinho. E, além disso, nem todos os
meus relacionamentos foram casuais. Houve uma mulher por quem eu me apaixonei.
O nome dela era Norah. Maggie a chama de “perdida”, porque ela se envolvia com drogas
e com outros homens que proporcionassem isso a ela. Enquanto estava comigo,
segundo vim a descobrir. Então um dia eu a expulsei da minha vida, disse que
nunca mais voltasse e ela não voltou. Falando assim, parece que foi simples,
mas não foi. Não me orgulho disso, mas as coisas que dissemos um ao outro eram
ruins o suficiente para afastar duas pessoas pra sempre.
— E isso tem a ver
com Logan... — incitou Kyle.
A expectativa ao
redor cresceu junto com o silêncio. Não havia murmúrios. O mero zumbido de uma
mosca a dez quilômetros poderia ser ouvido se nos concentrássemos nisso, mas
estávamos concentrados em cada palavra que saía da boca de Jeb.
Nem me atreveria a
tentar supor o que os outros estavam pensando. Mas, por minha vez, eu ouvia
tudo como se fosse a história de outro. Como se fosse um desses filmes que o
pessoal daqui gostava de lembrar em detalhes, costurando buracos da memória com
o que criavam suas imaginações.
De certa forma, era
melhor do que real.
— Antes do Logan
que conhecemos, havia um homem chamado Logan Smith. Ele foi criado em lares
provisórios, porque a mãe foi presa por tráfico quando ele tinha cerca de três
anos. Então ela morreu um tempo depois e Logan Smith, que poderia ser o filho
de Norah Smith, minha ex, nunca soube quem era o próprio pai.
— Espera, espera,
espera, você está dizendo que a fantasia do Logan de te tratar como pai pode
ter — ou tem — uma razão de fato? — questionou Kyle, então olhou para mim. —
Desculpe, chapa, desculpe mesmo por dizer isso assim, mas é que é muito
estranho. Parece mesmo imaginação.
— Kyle — Sunny o
repreendeu e ele a olhou como se não entendesse o porquê. Era compreensivamente
óbvio questionar a convicção de Jeb, que parecia alicerçada apenas em
impressões. Não dava para discordar, eu também já tinha feito isso.
— O que meu irmão
quer dizer — Ian remexeu-se meio desconfortável —, mesmo que da forma meio
grosseira dele, é que, sim, vocês sempre foram muito amigos e ninguém deixou de
observar que se gostavam ao ponto de parecer mesmo pai e filho. Para quem teve
um pai como o nosso — disse, olhando para Kyle —, era muito claro o tipo de
relação paternal que vocês desenvolveram. Mas em todo esse tempo... por que
agora? Por que de repente vocês resolveram levantar essa lebre? Sei lá, não
estou sabendo me expressar bem, me perdoem, mas é que não estamos conseguindo
entender o que... o que de repente levou vocês a pensarem que podia ser real?
— Na ocasião em que
precisamos dividir o mesmo corpo — expliquei —, dividimos também algumas
lembranças. Jeb passou um tempo incomodado com isso, tentando saber mais, me fazer
lembrar de mais... Então, por fim, ele me disse do que suspeitava.
— E você fez o que
fez para poder dar a eles uma chance — concluiu Sunny, os olhos marejados por
uma emoção estranha. Empatia, eu achava. E solidariedade.
— Tudo bem —
ponderou Magnólia, antes que eu pudesse responder. — Eu entendi. De fato, você
tem traços familiares. O lugar também faz sentido... Que eu me lembre, Norah
era de Phoenix, então pode muito bem ter voltado para lá. Mas é uma cidade bem
grande, e Smith um sobrenome comum.
— Isso não importa,
Magnólia — Jeb quis freá-la, mas ela queria mais do que impressões de
familiaridade e estava em seu direito. Ninguém mais precisava embarcar nessa
decisão louca de assumir vínculos sem provas. E se era assim que Jeb queria,
teríamos que ser francos e lidar com o estranhamento dos outros.
— Os Escritórios
dos Buscadores conservam registros digitalizados dos documentos dos humanos,
então seria fácil descobrir se Norah Smith era a mãe de Logan Smith, mas não seria
suficiente, porque não confirmaria a paternidade, que era o que nos
interessava. Então em vez disso arranjei um teste — contei.
— Bem... E? —
perguntou Melanie, os olhos brilhando em expectativa.
Limpei a garganta,
procurando as palavras, constrangido por confessar que não tinha uma resposta,
mas Jeb não pareceu se incomodar.
— Eu disse a ele
que jogasse fora.
— Como é!? — Achei
que Maggie e Melanie tinham dito isso juntas, mas por certo também tinha sido a
reação de mais gente. Eu só estava sobrecarregado demais para definir de quem.
— Eu não preciso
disso para amar Logan como um filho. Não preciso de uma resposta positiva. E
não quero correr o risco de uma resposta negativa. Ainda mais depois do que ele
fez.
— Depois... Ah, não
me diga! — Kyle meio que bufou, olhando para mim. — Você fez as retiradas antes
de saber, antes de sequer propor o teste de paternidade ao Jeb, não foi?
— Não era mais
apenas sobre Jeb — Estrela interferiu em minha defesa. —Ele precisava entender
o que sentia em relação a Logan Smith também. Dar ao humano ao menos uma chance
de viver essa história, de ter uma família. Você deveria entender, Kyle. Depois
do que Sunny fez por você.
— Eu entendo, mas a
ordem das coisas está meio invertida aí, vocês têm que admitir. Ao menos Sunny
não tinha como duvidar que eu era o namorado de Jodi. Ela se lembrava. Logan
não lembra de nada.
Kyle tinha um
ponto. Mas a verdade era que as lembranças que importavam eram as que eu tinha
daqui, do tempo com todos eles. Foram elas que me fizeram quem sou. Elas me
fizeram amar e me tornaram quem sou hoje. Eram essas lembranças, e não as do
passado do humano que determinavam como eu me sentia.
— Acho que, nesse
sentido, concordo com Jeb — respondi. — Em que o teste mudaria o que sinto?
— Talvez não
mudasse, mas... Ah, sei lá, Logan. Você não bate bem. Tem uma filha pra criar,
uma filha biológica desse corpo aí, e estava disposto a abrir mão do corpo?
— Não é o corpo que
me faz pai dela, Kyle. Lindsay continuaria sendo minha filha.
— Sim, mas também
seria filha dele.
Eu sempre tinha
respostas, especialmente para Kyle, mas não podia discutir a lógica dele desta
vez. Na verdade, há muito tempo minhas decisões não eram mais regidas por
lógica. Tive que aprender a abrir mão disso para conseguir colocar alguma ordem
ao que eu sentia, por mais contraditório que parecesse. Contudo, como explicar
isso a alguém que não fosse Estrela? Ou mesmo Sunny e Peregrina?
Como explicar o que
significa a separação entre corpo e alma para alguém que só entende isso como a
chegada da morte?
— Não sei como
seria. Não sei como daríamos um jeito. Vocês mesmos disseram como será difícil
prever o que acontecerá em cada caso, o meu não seria diferente. Mas sei que
precisava dar essa chance a Jeb e ao outro Logan. Àquele que ele era antes de
mim.
— Não existe mais
nada que possa voltar a ser o que era antes de vocês, otário. Pensei que esse
era o ponto.
Não raro, Kyle
conseguia ter razão. Às vezes até de um jeito esmagador. Esta era uma dessas
vezes.
— Sim, é precisamente
o ponto que todos tivemos que aprender. Só que, aparentemente, demorou um pouco
mais de tempo pra mim — concluí.
Nada podia voltar a
ser o que era antes. Kyle tinha razão. Mas o fato de ser uma lição óbvia não a
tornava menos difícil.
— Você não se
lembra mesmo, Logan? — Peg questionou, retomando o foco. — Nem mesmo do nome da
mãe de Logan Smith?
— As próprias
lembranças dele eram poucas e longínquas — respondi meneando a cabeça.
— Pensei que vocês
guardassem as memórias — disse Jared, em dúvida. — Ao menos as mais
importantes.
— É o que acontece
no começo, mas logo temos que abrir espaço para nossas próprias
características, para nossas próprias vivências. E apesar dessas lembranças
serem importantes para ele, não eram para mim, porque eu tinha muito com que
lidar. Em minha cabeça...
Pela primeira vez,
tentei verbalizar minha luta inicial com este corpo, mas era difícil encontrar
as palavras, porque sempre achei indigno reclamar, desrespeitoso me lamentar,
mesmo quando descobri que não era tão difícil para todos. Por isso, enterrei
tudo fundo dentro de mim. Tudo. As lembranças, a dor, qualquer pesar que me
lembrasse que o corpo não tinha sido sempre meu.
Então as memórias
ficaram como impressões no vidro. Indiscerníveis, ainda que presentes. Como
fantasmas dentro da minha mente.
— O passado de
Logan não era exatamente feliz — continuei. — As lembranças mexiam com ele de
um jeito ruim. E quando eu herdei tudo, tive que aprender a viver com essa
espécie de bomba-relógio. Em um corpo que carregava emoções tão conflituosas
que às vezes parecia prestes a explodir. Não era tão incomum, vim a saber.
Muitos humanos sofriam de depressão e outros tipos de transtornos difíceis de
lidar. E apesar de nossa medicina curar o cérebro rapidamente, as emoções são
diferentes, mais complexas. Você tem que aprender a controlar, precisa desarmar
os gatilhos. O meu jeito de fazer isso, não por acaso, foi igual ao dele:
sufocando tudo. Os Confortadores achavam uma temeridade, mas eu decidi que
funcionava, então “coloquei tudo numa caixa e joguei fora”. Ou achei que tinha
jogado. Tentei moldar toda agressividade que o corpo me trouxe à minha própria
personalidade e função e segui adiante pelos anos que vieram antes de eu
conhecer vocês. Só entendi que não havia dado certo quando me arrependi pelo
que fiz a Peg e a Ian.
— Você fez
escolhas, Logan. A maior parte boas. Algumas fundamentais para a sobrevivência
de muitos aqui. E elas são mérito e responsabilidade seus. Se me perguntar,
acho que você conseguiu lidar bem com tudo. Apesar dos erros.
— Já falamos muito
sobre isso, cara — Ian completou. — Não vale a pena trazer tudo à tona de
volta. Não faz bem para nenhum de nós. Aprendemos a conviver e é só.
Eu não sabia o que
dizer, porque muitas vezes não conseguia sentir assim. A história dos meus
erros e acertos se parecia mais com uma conversa interminável que estávamos
sempre resgatando, mesmo quando achávamos que estava enterrada.
Ian segurou a mão
de Peg e a levou aos lábios como já tinha feito minutos antes, mas desta vez
foi um gesto tão natural que fazia o amor deles parecer uma linha reta. Como se
a curva perigosa que lhes impus fosse apenas uma ficção distante. Ela sorriu
para ele, estendendo os dedos para tocar-lhe a bochecha de leve. Naquele breve
instante, nada mais tinha importância.
E era assim que
era. A vida continuava seguindo apesar da dor, por causa de momentos como esse.
Esses eram nossos passos. Um momento simples após o outro.
— Nós aprendemos a
conviver e é só — repeti. — Porque precisamos. Então se Jeb precisa disso,
aprenderei a ser um Stryder. Vai ser uma honra.
O rosto de Jeb se
iluminou:
— Não espero que
vocês me entendam. Nem mesmo que se acostumem. Mas achei que mereciam saber. O
que realmente espero é que compreendam que essa é uma coisa minha.
— Deveria ser uma
coisa de vocês dois, não é? — Lacey questionou depois de muito tempo calada.
— O que quer dizer?
— Jeb quis saber.
— Que você
simplesmente decidir que tem um laço com Logan parece outra de suas imposições.
Ele ao menos está de acordo com isso ou só está querendo te agradar, como está
parecendo?
Eu não fazia ideia
de por que ela se importava, muito menos por que decidiu falar, embora
provavelmente fosse a única que tivesse essa coragem. De qualquer jeito, meu
palpite era de que Lacey considerava toda e qualquer imposição como uma
injustiça, e diante disso nem mesmo seu suposto egoísmo poderia se calar.
Contudo, apesar da noção inédita de ser “defendido” por ela, senti necessidade
de explicar que era desnecessário.
— Logan toma suas
próprias decisões, Lacey — Jeb se antecipou. — Assim como todos vocês. Mas
independente disso, vou continuar me comportando como o pai que ele deveria ter
tido.
— Eu nunca tive a
intenção de me apartar de Jeb, porque sempre o considerei como minha família.
Então para mim nada muda — completei. — Estou de acordo em, como ele diz, dar
um nome humano a isso.
— Que seja — ela se
levantou, batendo as mãos nas pernas e depois uma na outra, como se quisesse
espanar o pó da discussão. — Estou indo dormir. Se tiverem mais novidades,
podem nos manter informados. Aliás... Você já está chamando Candy de “mamãe”?
Jeb teve um súbito
acesso de tosse, enquanto Lacey se afastou rindo, sem esperar por uma resposta.
Notei as pessoas disfarçando o riso. Observando melhor, ouvi Doc limpando a
garganta constrangido, enquanto Sharon arqueava a sobrancelha numa expressão
engraçada.
— Candace e eu... —
Jeb começou. — Lacey está dizendo isso porque deve ter descoberto que Candy e
eu nos tornamos bons amigos, mas a situação acabou evoluindo. Nós decidimos
guardar para nós por um tempo, mas a verdade é que... Bom, estamos num
relacionamento.
— Hum — fez Mel, assentindo
com a cabeça. Os lábios apertados numa linha estranhamente cômica. — Que legal,
tio.
— É, parabéns, Jeb —
disse Ian. Ao seu lado, Peg estava vermelha como um pimentão.
Jeb estreitou os
olhos, um sorriso de lado quis lhe fugir, mas ele se manteve sério, acusatório.
— Vocês já sabiam.
— Algumas coisas o
senhor consegue esconder de nós. Outras não — Mel explicou com bom humor.
— As paredes podem
ser meio finas em alguns pontos — Lily riu, dando de ombros.
— Merda! Por que
não disseram nada? — Jeb esbravejou, trocando o constrangimento por uma
indignação que soava muito fora de lugar.
— Porque vocês não disseram, Jebediah. Ora, pelo
que mais? — Magnólia o repreendeu. — Veja só se tem graça um homem da sua idade
escondendo namorico! Mas se preferiam assim, deixamos vocês pensarem que não
sabíamos.
— Que diabo,
Maggie!
— É isso mesmo. Nós
sempre respeitamos seus segredos e maluquices, não é novidade. Logan nem de
longe é a mais difícil de engolir.
— E isso,
supostamente, é a maneira como você o elogia? — Jeb retrucou.
— Estou dizendo que
posso me acostumar a outro sobrinho e vou. Elogios são um passo além.
— Pois eu gostei de
ter um primo — disse Jamie, rindo. — Bem-vindo à nossa família, Logan.
Cruzando o espaço
entre nós, Jamie estendeu a mão para um daqueles cumprimentos barulhentos e
desajeitados que ele chamava de “coisa de parceiros”. Correspondi e retive o
braço dele, puxando-o um pouco para mim e ameaçando desequilibrar o garoto.
— Tá bom, vai. Eu
sei que você quer me abraçar. — De pé,
ele fez um gesto me chamando para me levantar também. Quando o fiz, fui
subitamente enlaçado por seus braços compridos enquanto ele me batia forte nas
costas, provocando risadas nos outros. — E eu não vou ser a pessoa que
questiona a complicação de um primo meu ter uma filha com minha irmã.
— Nem comece! — Mel
soltou uma risada. Depois olhou para mim. — Jamie gosta de ser o piadista da
festa, como todos sabem. Mas estamos muito felizes por vocês. Não que mude o
quanto eu já gostava de você. Só o que muda é que você agora é oficialmente o
segundo melhor jogador de futebol da família.
— Ei! — Peg
interviu, bem-humorada. — Pensei que a segunda melhor jogadora da família,
depois de você, era eu. — Não era muito típico dela brincar, mas o clima estava
especialmente atípico esta noite.
— Não, você é a
primeira, irmãzinha — Mel respondeu, virando-se de volta para mim e dando uma
piscadela.
Outra vez, nós
rimos, e Peg lançou um beijo no ar na direção da “irmã”.
Não era mesmo muito
diferente, se eu parasse para pensar. Mel, Peg, Estrela e Jamie intitulavam-se
irmãos. Geoffrey e Trudy agiam como pais de Sunny. E até mesmo Lacey tinha um
carinho familiar por Candy. Todos aqui eram família por escolha.
— Seja bem-vindo,
primo — Melanie me abraçou, e foi muito bom recebê-la nos braços. Era a
primeira vez. Ao menos fora do campo de futebol.
Discretamente,
Sharon também se aproximou.
— Não sei se faz
muita diferença para você. Ou se vão acreditar depois de toda a minha
resistência nesses anos todos. Mas também estou feliz, Logan.
Melanie soltou um
dos braços de entorno de mim e o estendeu à prima, que aceitou. Meio sem jeito,
ela se encaixou entre nós em um abraço triplo.
— Acredito em você,
Sharon — afirmei. — E se você me permitir, vai ser uma honra te conhecer
melhor.
— Teremos tempo
para isso — disse Maggie, colocando a mão em meu ombro e me cedendo o primeiro
sorriso da vida.
Talvez nada disso
pudesse acrescentar muito ao amor que eu já sentia por Jeb, Melanie e Jamie.
Mas se podia abrandar o coração de Maggie e me tornar amigo de Sharon já tinha
se provado uma boa decisão.
— É como eu disse
antes — ela continuou. — Estamos juntos nessa e grudar os olhos no passado não
vai ajudar ninguém. Então vamos estender nossa boa vontade ao futuro, certo? Só
vamos deixar para começar amanhã, porque estou moída de cansaço e preciso
dormir. Boa noite a todos.
— Boa noite,
Magnólia — respondi.
Ela sorriu para mim
de novo, deu um beijo no rosto da filha, outro no do irmão, e então se retirou.
— Foi um começo
melhor do que eu esperava — resmungou Jeb.
— Agora te resta
explicar pra Candy o flagrante que vocês levaram, garanhão — Kyle provocou,
gargalhando.
Jeb limitou-se a
lhe lançar um olhar seco.
— Guarde suas
gracinhas, moleque. Não fiquei tão dócil quanto você está achando. Ainda te
boto daqui pra fora se me irritar.
Kyle fingiu
seriedade e ergueu as mãos num gesto de rendição, mas riu baixo quando Jeb lhe
deu as costas.
Quando percebeu que
Ian e Jared também faziam um coro baixo de risadas, o velho ficou vermelho e
praguejou, mas nem ele podia conter todo mundo o tempo todo.
— Fique de boa, Jeb
— disse Kyle, batendo nas costas dele. — Estamos comemorando as boas notícias.
Não vai matar ninguém ter um pouco de bom humor.
— Haha — Jeb
retrucou de má vontade, mas quando viu as expressões à volta, sua própria se
suavizou. — Talvez eu tenha ficado só um pouco mais brando e resolva agradecer
vocês pela amizade.
— Não seria mal —
meu amigo ogro falou em meio a um bocejo escandaloso. — Mas acho que vou fazer
como Maggie e marcar tudo na minha agenda pra amanhã.
— Acho que todos
têm o que digerir por esta noite — disse Sunny enquanto se despedia.
Então ela aceitou a
mão que Kyle lhe oferecia e os dois foram se deitar. Pouco a pouco, todos
começaram a fazer o mesmo, parando para nos parabenizar no caminho, do mesmo
jeito que fizeram quando anunciamos a gravidez de Lindsay. E, de um jeito bem
inusitado, acho que a situação era mesmo parecida.
Por fim, Estrela e
Jeb eram os únicos que ainda estavam comigo.
— Foi mais fácil do
que vocês pensavam? — ele perguntou.
— Ao menos não
tivemos que convocar um Tribunal — brincou Estrela, um tanto aliviada.
— A verdade é que,
sobre a parte que nos diz respeito eles não têm mesmo o que opinar — afirmei. —
Mas eu estava preocupado com como se sentiriam sobre o resto.
— É difícil pensar
direito nisso quando tudo são apenas abstrações e possibilidades remotas —
disse Jeb, se referindo a como eles agiriam quando estivessem mesmo frente à
imagem de seus entes queridos. — Eu mesmo não sei se teria tido coragem de
pedir esse sacrifício a você.
— Por isso garanti
que você não precisasse.
— Sim, você é esse
tipo de pessoa, filho.
— Vou até o quarto ver
como está Lindsay e liberar Candy. Ela deve estar cansada — disse Estrela, beijando
meus lábios e a bochecha de Jeb.
— Boa noite,
Estrelinha. Obrigado por tudo — ele disse, recebendo um sorriso dela em troca.
— Já estou indo
também. Daqui a pouco — garanti a ela. Então virei-me de volta para Jeb. — Você
está bem?
— Excelente, filho.
Por que seria diferente?
— Bem, tudo isso
tem nos sobrecarregado um pouco, acho.
— O que me
sobrecarregou foi ser teimoso o bastante para não conseguir dividir isso com
você antes. Se tivesse, você não teria descoberto daquele jeito desastroso e
teria confiado em mim antes de sair fazendo loucuras, embora eu seja grato pela
consideração.
— Eu confio em você,
só que...
— É o tipo de pessoa
que você é, sempre querendo tomar a frente das coisas. Você é teimoso.
Ele sorria ao me
dizer isso, como se achasse ao mesmo tempo incômodo e divertido.
— Desculpe — pedi. —
Devia mesmo ter confiado em você.
— Somos dois
desastrados.
Admirei a palavra.
Fazia eu me sentir como o personagem de uma comédia. Mas acho que era isso
mesmo que nós éramos. Desastrados. Parecia mais intrínseco e mais gentil do que
simplesmente nos tachar de desconfiados.
— Você... —
começamos a falar ao mesmo tempo, depois silenciamos.
— Diga você
primeiro — Jeb pediu.
— Você fala mesmo
sério quando diz que não importa o que eu decida?
— No bom sentido,
sim. É claro que me importa muito, mas não vou forçar você a nada, filho. Só
quero que você saiba que, em meu coração, já está decidido que agirei como seu
pai. O que quer dizer, na nossa circunstância particular, que vou respeitar se
você continuar me tratando como um simples amigo. Já tenho o bastante, não seria
nem justo almejar mais como se não fosse o suficiente.
— Eu só tenho medo —
expliquei. — De não ser o que você espera.
— Conheço você,
Logan. Você sempre foi exatamente quem eu esperava.
— E eu não digo “eu
te amo” com muita frequência.
— Não é considerado
muito macho — ele riu. — Entendo.
— Não é isso. Almas
não se importam com estereótipos. É só que, como humano, fui criado sem saber o
que era isso. E nunca achei que alguém além de Estrela e Lindsay se importassem
com esse sentimento de minha parte. Mas eu... Eu amo você, Jeb. Desde sempre.
Você sempre foi minha pessoa de confiança.
Os olhos de Jeb
ficaram vermelhos de novo, e ele desviou rapidamente o rosto para disfarçar.
Depois voltou-se para mim de novo, as lágrimas caindo francamente desta vez.
—Pois eu fui criado
de um jeito mais rústico, mas guardar sentimentos é outra das burrices que você
me ensinou a evitar. Por isso... Embora você já saiba, eu também te amo, filho.
Você. Do jeito que é.
Assenti. Acreditando.
E chorei também. De alívio.
Fiquei paralisado
ali ao lado dele, as mãos escondidas nos bolsos sem saber o que fazer ou o que
dizer depois disso. Foi Jeb quem se moveu. E pela segunda vez me abraçou.
Deixei as lágrimas
limparem minha dor e a de Logan Smith. Permiti que Jeb me amparasse e senti paz
em estar vulnerável. Acho que isso era ter um pai.
Por fim, me afastei,
limpando o rosto com as costas das mãos e agradecendo-o com um aceno de cabeça,
desses que eu vinha usando muito quando as palavras mais óbvias me faltavam.
— Vou dormir também
— me despedi. — Foi um dia cheio.
— Certo. Boa noite,
filho. Até amanhã.
Boa noite, filho.
Até amanhã.
Era bom ouvir essas
palavras. Bom saber que amanhã o dia renasceria e não haveria mais segredos. Que
os medos que existiam podiam ser enfrentados por nós juntos.
Boa noite... Filho.
Ele não diria
diferente. E era bom ouvir.
Jeb merecia saber
que embora certas palavras já soassem corriqueiras para ele, eu sempre as
sentiria pelo valor que tinham. Ele merecia ouvir a contraparte, portanto. E se
eu sempre as tinha sentido, era bobagem continuar hesitando em usá-las.
— Boa noite... pai.
A palavra deslizou
por minha boca com a maciez da verdade. E, sobre os ombros, observei quando
pousou como uma borboleta no coração dele.
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