terça-feira, 20 de novembro de 2018

CD2 Cap 34


Capítulo 34 – Através do Vidro
How do you feel? That is the question
But I forget, you don't expect an easy answer
When something like a soul becomes initialized
And folded up like paper dolls and little notes
You can't expect a bit of hope
And while you're outside looking in
Describing what you see
Remember what you're staring at is me
'Cause I'm looking at you through the glass
Don't know how much time has passed
All I know is that it feels like forever
When no one ever tells you that forever feels like home
Sitting all alone inside your head
(Through Glass – Stone Sour)

Logan

— Eles te pediram pra fazer isso, não foi? — perguntou Kyle, sem me esperar falar.
— Era óbvio que eles iam impor algum tipo de condição. Não faria sentido se não impusessem. Caso contrário seríamos uma ameaça, todos nós! — opinou Magnólia.
— Na verdade, tudo o que David deixou explícito como condição seria a entrega de todas as nossas armas — Lily esclareceu. — Tudo o que possuem agora são armas não-letais. E não podem correr o risco de humanos circulando entre eles com armas de fogo.
— Vai ser muito difícil alguém confiar neles o bastante para viver desarmado. Pelo menos no começo — disse Andy.
— Bem, a ideia é trocar nossas armas pelas deles até nos convencermos de que nada disso será necessário e decidirmos por nós mesmos — Jared interviu. — Mas quanto ao que Peg nos ensinou a fazer, eles ainda não sabem que podemos retirar uma Alma do hospedeiro.
— Eles não me pediram para fazer nada — aproveitei a deixa para retrucar a pergunta inicial de Kyle. — Mas alguém precisava ter feito, de qualquer maneira.
— Certo, certo. Isso é uma coisa que não ia passar batido mesmo. Nós não contamos nada, mas nesse tempo todo que vocês passaram por lá acho que precisaram contar, né? E o que foi que eles disseram, hein? Ficaram muito bravos? — questionou Jamie.
— Eu não contei nada ainda. Essa é a história de Peregrina e Melanie, são elas que devem decidir quando e para quem contar.
— Obrigada, Logan. Eu aprecio isso. Mas não há relutância de nossa parte quanto a dizer a verdade a Flora e David — disse Peg, sob a concordância de Mel. — Temos que ser sinceros com nossos aliados. E apesar de imaginar que as Almas não gostariam que os humanos soubessem dessa possibilidade, não acredito que seja possível guardar segredo. Os humanos das células que conhecemos já sabem de nossa história. E é uma coisa fundamental demais para ser ocultada. Nenhuma Alma pode acreditar em uma nova sociedade harmônica que se baseie em mentiras e omissões. Além disso, talvez muitos tentassem de qualquer jeito, como vocês faziam aqui antes, se é que já não tentam.
Ian segurou a mão de Peg e a levou aos lábios no momento em que ela trouxe à tona as experiências malsucedidas de Doc no passado. Ela não falava sobre isso, ninguém falava. Mas um dia Ian me contou sobre a tristeza que assolou Peregrina quando flagrou os humanos com sangue de nossos irmãos em suas mãos. Por isso, apesar de os olhos de minha amiga permanecerem resolutos, eu notava a sombra ali, e apreciei quando Ian passou o braço ao redor dos ombros dela.
— Nós achamos que há outros aculturados — ele especulou. — Vocês todos são prova de que as emoções dos hospedeiros são fortes o bastante para influenciar a própria constituição da identidade de uma Alma na Terra. Então, assim como nós não somos os únicos remanescentes no mundo, vocês e Cal não devem ser os únicos também, concorda?
— Sim, concordo. E isso possivelmente significa que o que aconteceu com Peregrina e Melanie...
— Não aconteceu apenas aqui — Ian completou. — O segredo não faz sentido. Do ponto de vista dos humanos remanescentes que ainda não souberem dele, só seria mais uma traição para dificultar a confiança nas Almas.
— Foi por isso que você fez essa loucura — concluiu Sunny, algo desgostosa. — Mas, Logan, isso me deixou doente e fraca. Anos atrás! Agora deve ter sido muito pior pra você, com todo o tempo que já passou nesse corpo. Eu entendo o que vocês estavam tentando provar, mas deviam saber que era um risco grande demais. E se o corpo não aguentasse a retirada? E se...?
— Foi preciso, irmã. Sei que você está assustada com o que podia ter acontecido, mas entende tão bem quanto nós que era preciso. Estrela estava comigo. E Cal também, para ajudá-la a me monitorar. Quando vocês tentaram aqui, não tinham recurso nenhum, mas nós procuramos fazer da forma mais segura possível.
— Sei. E o que isso significa, afinal? — Kyle questionou, a mão subindo e descendo nas costas de Sunny, a boca fixa numa linha reta enquanto eu percebia seu maxilar se apertando.
— Nós fizemos retiradas sucessivas — esclareceu Estrela. — Porque sabíamos que o corpo não sobreviveria sem a Alma tempo o suficiente para o humano ter uma chance de acordar. Não sabemos explicar a razão, não há nada científico que justifique, mas uma retirada não é a mesma coisa que, digamos, um coma induzido. Eu me informei a respeito e havia dados sobre a perda de hospedeiros criogenizados. Nós temos a tecnologia para conservar o corpo intacto, mas se a consciência do humano tiver sido suprimida, sem a Alma, as células começam a morrer apesar disso. Sem a criogenia, os riscos se agravam e o processo se acelera. Obviamente, não podíamos manter Logan congelado, perderia o propósito. O cérebro dele precisava estar em pleno funcionamento para o humano ter alguma chance. Então mantivemos o corpo em coma por quanto tempo estivesse estável e seguro, o que não podia passar muito de cinco dias a cada vez. Eu registrei tudo, obtive amostras e posso provar a qualquer um que depois disso os minerais começam a parar de ser produzidos e as células se desestabilizam. Há meios de desacelerar esse processo com medicamentos, mas se os neurônios morrerem, por exemplo, não se pode recuperá-los. Então esse era nosso grande medo. Por isso não esperávamos os sinais óbvios, como os órgãos começarem a falhar, o enfraquecimento do coração, porque isso tornaria o quadro muito grave para ser revertido com sucesso. Logan era inserido de volta e ficava cerca de três ou quatro dias se fortalecendo, deixando sua marca psíquica... Desculpem, só consigo interpretar assim, embora pareça estranho — Ela sorriu sem humor. — Mas aí só então tentávamos de novo, esperando que a marca “enfraquecida” da consciência de Logan deixasse espaço para a do humano, contudo nada acontecia. Exceto que cada vez os despertares eram mais complicados. Ele demorava mais para acordar e precisávamos reforçar as doses dos medicamentos que o ajudavam a se restabelecer. Por isso, na quinta vez, felizmente, Cal conseguiu convencê-lo a parar.
— Isso foi uma loucura, meninos — disse Trudy, indignada. — Eu estava lá quando Sunny tentou. Os pulmões dela ficaram fracos, os músculos também. Isso porque só foram uns poucos dias...
— Mas nós tínhamos as condições apropriadas. Se houvesse problemas respiratórios, poderíamos entubá-lo rapidamente, por exemplo. Para a musculatura tínhamos fortificantes, vitaminas para o sistema digestivo... Algumas vezes quando acordava ele vomitava e ficava indisposto por algumas horas, mas também tínhamos recursos para regularizar o apetite e a digestão em pouco tempo.
Eu observava Estrela descrevendo tudo como se fosse um experimento, no tom distanciado e sem emoção que tinha se acostumado a usar quando tratava desse assunto, e admirava essa capacidade dela.
Estrela era admirável.
Com essa missão dolorosa, eu a tinha obrigado a se compartimentar, a agir como cientista e Curandeira. Mas agora, enquanto contávamos a nossos amigos aquilo que precisavam saber, eu me dava conta de que seu coração sensível tinha, como sempre, entendido a verdade bem antes do meu.
Começou como um propósito, de certa forma, individual. Algo que estávamos fazendo por Jeb. E por mim. Mas era mais do que isso. Precisava ser feito com toda a força e plenitude de quem nós éramos, porque tínhamos todos que saber. Então não era só a Estrela Curandeira quem falava.
Era toda sua piedade, toda sua devoção, toda sua paciência. E sondando as expressões dos meus amigos, eu percebia que eles entendiam isso também.
Era de se duvidar que todos os humanos remanescentes, aqueles que não conhecíamos ainda, acreditassem em nós. Contudo, conhecimento era a chave, sempre fora. O que quer que fizessem com a informação, humanos e Almas mereciam conhecer os limites. E as consequências.
— Logan podia ter morrido? É isso o que você está dizendo? E Sunny também, quando tentamos naquela época? — Geoffrey, ao lado de uma Trudy preocupada, questionou.
— Eu sinto muito. — Estrela inclinou a cabeça. — Os Representantes têm poucas condições a impor: a entrega de todas as armas letais e o respeito ao livre arbítrio das Almas sobre os corpos que ocupamos. Sem isso, nossa espécie não poderia sobreviver aqui. E é interesse de muitos permanecer enquanto se constrói uma nova sociedade. Para ajudar. Isso quer dizer que vocês são livres para tentar encontrar seus entes queridos, mas não poderão forçar as Almas que estão em seus corpos a uma retirada. Contudo, se conseguirem convencê-los em audiência pública, para todos serem testemunhas de que não houve coação, a retirada será feita com todos os recursos necessários. Mas vocês precisam saber que podem matar os hospedeiros no processo.
— Do jeito que você está falando... — Jared arguiu, parecendo inquieto. — Vocês já revelaram a experiência de Logan a eles?
— Não particularmente — Estrela continuou. — Mas eu levantei o questionamento em uma reunião a que compareci. Eles já vinham contemplando a questão hipoteticamente. Ainda não fizeram testes, mas os cientistas já imaginam o que pode acontecer. Vocês precisam entender a posição deles de proteger os seus. A integração entre espécies não pode ser feita de forma a nos colocar em risco, de qualquer maneira.
— Que merda — escutei alguém dizer.
— Sinto muito — respondi. — Talvez vocês não acreditem. Às vezes eu mesmo custo a admitir, porque, claro, seria difícil para mim se o humano acordasse. Não há corpos disponíveis e eu não sei quanto tempo levaria para voltar para vocês, ou com que história voltaria... Mesmo assim, queria ter notícias melhores.
Nesse ponto, fiz uma coisa que tinha evitado até então. Olhei para Jeb, dirigindo outra vez minhas desculpas a ele.
Meu pai... Meu! Eu continuava dilacerado entre a satisfação de poder dizer isso e a vergonha. Mas ele me devolveu um olhar sereno. Amoroso.
Por certo que havia dor ali, mas não era o que importava.
Jeb. Estrela. Eu. Nós éramos mais do que dor. Mais do que a “frieza” de dizer ou fazer o que fosse preciso. Nós éramos seres completos. Nós éramos uma história. E uma que podíamos tornar em um final feliz. Havia amor suficiente para isso.
— Que merda, Logan. Seu otário! — Era Kyle desta vez. E, assim como ele, muitos pareciam me dirigir uma espécie de carranca.
— Você é parte da nossa família agora — disse Mel, como se adivinhasse minha confusão sobre o motivo de quase todos parecerem tão bravos. — Não gostamos de saber que você se colocou em perigo.
— E sem nos dizer nada — Kyle de novo.
— Nós não queríamos preocupar ninguém — argumentei, o que era verdade também.
— Conversa fiada. Você não queria era correr o risco de a gente tentar te impedir. Acha que não aprendemos nada com o que houve com Sunny?
— O que eu sei é o que você mesmo já me disse, Kyle. Mais de uma vez. Que já pensou em procurar seu pai. Só nunca fez isso porque Ian te convenceu de que, se não desse certo a retirada, a Alma poderia se tornar hostil e comprometer nosso esconderijo. Pois bem, agora não precisaremos mais de um esconderijo.
Eu sabia que tinha jogado baixo, mas da mesma forma que Kyle tinha apontado a faceta pouco nobre de meu propósito inicial, ele sabia que eu também não deixava de ter razão.
— Ora, Jared estava agora mesmo falando que se sentia tentado também — reforcei. — Todos vocês se sentirão. E quanto aos outros humanos que nem conhecemos? Que nunca conviveram com Almas e não têm motivo algum para respeitar nossa existência?
— Acho que esses, de qualquer jeito, não vão se comover com o fato de você quase ter morrido tentando — Kyle rebateu.
— Exato, porque eu não teria morrido e você sabe. Mas eles precisam saber que o corpo, sim, pode morrer.
— É o mesmo, Logan. Se a consciência da pessoa se foi, dá no mesmo pra eles arriscar o corpo se não se importarem com a Alma. E muitos vão achar que vale o risco, pela mera possibilidade de ter um parente ou amigo de volta, de dar a outro humano a chance, mesmo que remota — disse Jared.
— Ao menos todos devem saber quais são esses riscos, para além das suposições — respondi.
— Cara, essa discussão é muito inútil — Jamie se manifestou, e todos voltaram os olhares surpresos para ele. — O quê? Vão me dizer que tem sentido tudo isso?
Kate o puxou para si, encostando o nariz na bochecha dele, como se pedisse paciência, mas Jamie parecia determinado a provar seu ponto, qualquer que fosse. Provavelmente, eles já deviam ter debatido isso dezenas de vezes. Afinal, junto com Isaiah e Liberdade, tinham crescido neste mundo que habitávamos agora.
De repente, me senti um grande tolo por não os escutar com mais frequência.
— O que quer dizer, Jamie? — perguntei.
— Que eu já perdi meus pais e todos os meus amigos de uma única vez. E foi horrível de um jeito que nem dá pra contar. E se alguém me dissesse “ei, cara, quer arriscar isso de novo, só que dessa vez um por um?”, eu não sei se dava um soco na pessoa ou internava. Porque é óbvio que conhecendo as possibilidades, parece a maior burrice do mundo passar por isso só por tentar. Mas aí eu olho pra Mel e lembro que ela só está aqui por causa do que a Peg e o Doc fizeram. Então, se depois disso a mesma pessoa me perguntar se eu arriscaria sofrer pela chance de ter meu pai ou minha mãe de volta, eu ia responder que sim, claro! Por isso estou dizendo que tudo depende do jeito como a gente olha. E só vamos saber isso quando estivermos frente a frente com as Almas nos corpos que amamos. Só que eu nunca ia querer que Peg sofresse. Nem Kyle quis que Sunny sofresse. Nem Ian quis isso para Estrela ou qualquer um de nós para você, Logan. Daí tem isso também. Não dá pra gente ficar aqui discutindo o que faríamos, porque as Almas não são vitrines com as nossas famílias dentro. São pessoas. E enquanto a gente não se encontrar com elas não dá pra saber.
Pessoas. A palavra ressoou entre nós.
Sim. Como sempre, Jamie tinha razão. Nós éramos pessoas.
Mel e Peg se aproximaram de uma única vez de Jamie. A sequência de imagens foi bonita. Primeiro Kate se afastou ligeiramente e se juntou à mãe, logo atrás. Depois Melanie estendeu a mão para tocar o rosto dele. Por fim, Jamie olhou para Peregrina, como se a chamasse, e ela se aninhou em um abraço entre os irmãos Stryder.
Ao redor, pequenas e constrangidas manifestações de afeto se espalharam entre os demais também. Por minha vez, passei meus braços pelos ombros de Estrela e ela apoiou a cabeça em mim, deixando um pouco do peso dos dias anteriores para trás.
Olhei para Jeb e sorri. Ele respondeu com aquele olhar insondável que sempre me dizia todo tipo de coisas que eu mal podia decifrar, depois me devolveu um sorriso cúmplice.
— Bem, teremos uma chance, não é? — disse Kate. — Uma chance pequenininha e um monte de obstáculos. Mas pelo menos, na pior das hipóteses, talvez seja legal conhecer as versões Almas dos nossos parentes. Acho que meu avô nem deve ter mudado tanto assim. Ele já era tão bonzinho!
Rachel, a mãe de Kate, sorriu. Os olhos começando a marejar.
Pessoas. Todos nós.
Nem sempre eu consegui entendê-las, mas sabia que amava cada uma das que estavam ali.
— Já minha mãe deve ser bem diferente. A mulher era osso duro de roer — soltou Lily numa careta divertida.
— Uou, que franqueza! — Brandt riu.
— Ué, normal! Nem todo mundo nasceu para este mundo das Almas — ela rebateu, rindo também, o olhar meio terno e meio saudoso perdido em lembranças. — Minha mãe acharia um tédio ficar sem motivos para brigar com as amigas, com meus professores, com os clientes dela... Quer dizer, ela era boa pessoa, mas não levava desaforo para casa.
— Como Jodi — Sunny contribuiu e Kyle assentiu com a cabeça, sorrindo e acariciando o cabelo dela, dando a impressão de que falavam sempre sobre isso. E que, não tão estranhamente, depois de tudo, não era mais um problema.
— Mas meu pai daria uma boa Alma — ele disse.
— Ah, que isso! — Ian protestou. — Nosso pai sabia ser sangue quente quando queria.
— Sabia, sim. Mas só quando era preciso. E a gente merecia, mano. Lembra quando quebramos a vidraça do vizinho com a bola de basquete?
Os dois gargalharam juntos. E o clima se fez inusitadamente leve. De repente, era como se olhássemos álbuns de fotografia.
— A bola meio que ricocheteou lá dentro — contou Ian —, e o susto quase matou a velha mãe do senhor... Como era mesmo o nome dele?
— Morrison, lembra? Nós tivemos que pedir desculpas e oferecer o que o pai chamou de “vale vitalício de serviços gerais”. Cortar grama, trocar lâmpadas, desentupir ralos, pintar paredes... E o homem se aproveitou bem. Chamava um de nós até para abanar o cheiro dos peidos do cachorro — Kyle completou, como não podia deixar de ser, com alguma de suas piadinhas escatológicas.
— Não podemos reclamar. A gente não tinha dinheiro pra pagar o estrago e o vizinho foi legal entendendo isso. E nós realmente quase matamos a velhinha. Não sei como o pai conseguiu que eles nos desculpassem.
— Ele era bom nisso. Não falava muito, mas quando falava dava pra confiar em cada palavra que dizia. Todo mundo levava o Paddy a sério.
— É... — respondeu Ian, pensativo, os olhos em outra época. — Acho que ele sentiu nossa falta. A Alma, quero dizer.
— Não acho que minha tia sentiu minha falta — disse Brandt. — Eu fui criado por ela, mas não tínhamos uma boa relação. Não sei quais lembranças sobraram para a Alma, mas talvez ela prefira outra família, como eu prefiro vocês.
O canto da boca de Brandt se curvou um pouco, num sorriso constrangido que ele quase tentou evitar. Mas então Rachel, sua companheira, deitou a cabeça em seu ombro e Kate se virou para ele, sorrindo abertamente. Então ele sorriu também, e as pessoas à volta o acompanharam.
— Temos uma boa família — Mel murmurou. — As circunstâncias são estranhas, mas o resultado foi muito bom.
— Pelo menos alguns aqui cozinham melhor que meu pai — divertiu-se Jared. — Meus irmãos e eu tínhamos que fingir que não ligávamos para a carne tostada demais ou para a falta de sal no resto das coisas, porque ele gostava de cozinhar. Quero ver como devem estar se saindo as novas versões dos meus irmãos agora, já que Almas não costumam mentir.
Nós rimos.
Aquela era uma conversa estranha. Havia todo um mundo de palavras e histórias inarticuladas pairando entre nós. Mas eu simplesmente não conseguia sentir que não fosse natural. Que não fosse familiar.
— Desculpem, deve ser esquisito para vocês nos ouvir falar assim sobre as Almas — disse Lily.
— De forma alguma — Peg amenizou com seu jeito doce de sempre. — Acho que, de certa maneira, isso me faz mais bem do que todas as conversas que já tivemos sobre o passado.
— De certa maneira, acho que para todo mundo — respondeu Lily. — Porque é estranho, sabe? Acho que a gente sempre viveu com a ideia fantasma de que se tivéssemos a chance de rever alguém que amamos, mas não fizéssemos nada, se não cometêssemos a violência de tentar retirar a Alma dali, estaríamos escolhendo a Alma e traindo o humano. Mas agora, de algum jeito, esse peso se foi. E, como disseram, nós já vivemos o luto por anos! Acho que podemos todos tentar deixar a culpa e o sofrimento para trás.
— Você tem toda razão, Lily — Jeb se pronunciou. — No geral, não tenho dificuldades de dizer o que penso, mas confesso que não conseguiria expressar tudo de um jeito melhor do que você acabou de fazer.
Lily sorriu, lisonjeada, e as pessoas concordaram. Até mesmo Lacey, que se manteve quieta desde que caímos nesse tópico, pareceu pensar a respeito e encontrar mérito no raciocínio de sua principal opositora.  
— Talvez agora estejamos livres para apreciar as Almas pelo que são — continuou Jeb, olhando diretamente para mim.
Nossa conversa vinha sendo silenciosa até ali, mas de repente ele pareceu perder um pouco a paciência com esses meandros, como se estivesse determinado a externar as coisas. Seu jeito de me dizer que havia chegado a hora de contar aos outros sobre nós.  
Quanto a mim, ainda não me sentia pronto, mas concordava. Aquilo tudo ainda não parecia ser sobre mim, no entanto eu precisava deixar que fosse. Mesmo que talvez eu pudesse me dar ao luxo de deixá-lo conduzir tudo.
— E como nós somos? — questionei, porque eu queria entender.
Finalmente, estava começando a compreender a natureza do sentimento que tornava nossa conversa um tipo de bálsamo insólito. Tratava-se da sensação visceral de alívio. Da dádiva antes apenas branda de saber que eles não nos odiavam e que isso não mudaria. Mas não era a mesma coisa de entender por que eles nos amavam. Por que Jeb me amava.
— Melhores — ele afirmou. — E por isso talvez façam aflorar o que há de melhor em cada pessoa, de tal jeito que os defeitos não encontram mais terreno fértil e desaparecem, mas a essência original, a parte boa dela, permanece.
— Nós não somos versões melhoradas dos humanos, Jeb — disse eu, rejeitando a ideia. — Também não somos perfeitos.
— Eu não disse que vocês não tinham seus próprios traços, mas eles se fundem com as melhores partes do que já existia. E o que vocês chamam de defeitos, privados da nossa malícia, se tornam meras e suportáveis idiossincrasias.
— Eu sempre gostei dessa ideia, você sabe. Sempre quis acreditar nessa sua versão generosa. Mas... você não o conheceu. E não me conheceu antes — objetei.
Eu não queria que ele pensasse que eu era melhor. A obstinação de Jeb nesse sentido apenas nos faria mal.
— Eu não sou um substituto dele — completei. — Nem ousaria.
— Eu sei que é isso que te atormenta, filho. Mas não é isso que eu espero. Jamie colocou bem quando disse que nós já perdemos nossos entes queridos. E não devemos olhar para vocês como se procurássemos o que tem “do outro lado”. Toda essa conversa engraçadinha sobre nossos parentes pode ter te dado essa ideia, mas eu não vou fazer isso.
A expressão dele era veemente, certa, confiável. Não havia um único indício de dúvida no amor contido nas palavras que dizia. E mesmo assim, eu continuava não estando preparado para elas.
— A única coisa que posso conhecer é o que você conta, concorda? E nada nunca me decepcionou — ele continuou, como se adivinhasse minha relutância. E talvez adivinhasse mesmo. Jeb me conhecia bem.
— Espera aí — Kyle se meteu. — O que foi que a gente perdeu?
Olhei para os lados e percebi as expressões confusas. Tinha começado como outra conversa simples dentro de uma maior. E de repente era apenas mais uma discussão entre mim e Jeb.  
— Nada, não perderam nada — tentei disfarçar. Eu ainda não estava pronto. Simplesmente não estava pronto.
— Você se lembra da Norah? — Jeb perguntou a Magnólia.
— Aquela perdida que você namorava 900 anos atrás?
— Trinta e três anos atrás. Precisamente quando ela sumiu.
— Jeb — alertei.
— Já chega, Logan. É tempo demais.
Torci os lábios em desgosto, mas eu não conseguiria pará-lo. Não era justo também. Porque a história não era só minha. E aquela era nossa família, eles precisavam saber.
Respirei fundo e assenti. Estrela me abraçou e sussurrou calma em meu ouvido.
— O que tem ela? — Maggie perguntou.
— Você não acha que os olhos de Logan são iguais aos da nossa mãe?
Aquele era o jeito peculiar como Jeb e Maggie se comunicavam, como se partes inteiras do diálogo se passassem apenas na cabeça de um deles, mas o outro entendesse. E assim, do nada, Magnólia uniu as peças.
— Você está louco, Jebediah! — ela disse, olhando de mim para ele. — Homem, você está ficando senil...
— O que foi, mãe? — Sharon questionou, mas Maggie a ignorou.
Com os olhos presos apenas em mim, ela agora me analisava fixamente, embora suas palavras descartassem a possibilidade.
— Você nunca o ouviu cantar? — Jeb insistiu. — A voz do nosso pai. O maxilar do Trevor. A boa e velha teimosia dos Stryder. E os olhos, Magnólia. Não é possível que você não se lembre.
Maggie empalideceu. Depois balançou a cabeça, tentando se apegar à incredulidade.
— Jeb... — ela resmungou, mas não disse mais nada.
Dava para ver a luta dentro dela e isso era fácil de compreender. Não fazia sentido.
Eu podia sentir o peso de todos os olhares sobre nós, mas não conseguia desviar meus próprios olhos do rosto de Jeb.
Ele estava sorrindo. Como se sentisse orgulho.
Kyle limpou a garganta. O ruído deliberadamente alto chamando atenção para si.
— Nós ainda estamos aqui.
— É, e não estamos entendendo nada — disse Melanie, mas assim como Maggie ela parecia ter unido pontos que não julgava possíveis de se conectarem.
— Bem, como muitos de vocês podem supor, eu não passei a vida sozinho. E, além disso, nem todos os meus relacionamentos foram casuais. Houve uma mulher por quem eu me apaixonei. O nome dela era Norah. Maggie a chama de “perdida”, porque ela se envolvia com drogas e com outros homens que proporcionassem isso a ela. Enquanto estava comigo, segundo vim a descobrir. Então um dia eu a expulsei da minha vida, disse que nunca mais voltasse e ela não voltou. Falando assim, parece que foi simples, mas não foi. Não me orgulho disso, mas as coisas que dissemos um ao outro eram ruins o suficiente para afastar duas pessoas pra sempre.
— E isso tem a ver com Logan... — incitou Kyle.
A expectativa ao redor cresceu junto com o silêncio. Não havia murmúrios. O mero zumbido de uma mosca a dez quilômetros poderia ser ouvido se nos concentrássemos nisso, mas estávamos concentrados em cada palavra que saía da boca de Jeb.
Nem me atreveria a tentar supor o que os outros estavam pensando. Mas, por minha vez, eu ouvia tudo como se fosse a história de outro. Como se fosse um desses filmes que o pessoal daqui gostava de lembrar em detalhes, costurando buracos da memória com o que criavam suas imaginações.
De certa forma, era melhor do que real.
— Antes do Logan que conhecemos, havia um homem chamado Logan Smith. Ele foi criado em lares provisórios, porque a mãe foi presa por tráfico quando ele tinha cerca de três anos. Então ela morreu um tempo depois e Logan Smith, que poderia ser o filho de Norah Smith, minha ex, nunca soube quem era o próprio pai.
— Espera, espera, espera, você está dizendo que a fantasia do Logan de te tratar como pai pode ter — ou tem — uma razão de fato? — questionou Kyle, então olhou para mim. — Desculpe, chapa, desculpe mesmo por dizer isso assim, mas é que é muito estranho. Parece mesmo imaginação.
— Kyle — Sunny o repreendeu e ele a olhou como se não entendesse o porquê. Era compreensivamente óbvio questionar a convicção de Jeb, que parecia alicerçada apenas em impressões. Não dava para discordar, eu também já tinha feito isso.
— O que meu irmão quer dizer — Ian remexeu-se meio desconfortável —, mesmo que da forma meio grosseira dele, é que, sim, vocês sempre foram muito amigos e ninguém deixou de observar que se gostavam ao ponto de parecer mesmo pai e filho. Para quem teve um pai como o nosso — disse, olhando para Kyle —, era muito claro o tipo de relação paternal que vocês desenvolveram. Mas em todo esse tempo... por que agora? Por que de repente vocês resolveram levantar essa lebre? Sei lá, não estou sabendo me expressar bem, me perdoem, mas é que não estamos conseguindo entender o que... o que de repente levou vocês a pensarem que podia ser real?
— Na ocasião em que precisamos dividir o mesmo corpo — expliquei —, dividimos também algumas lembranças. Jeb passou um tempo incomodado com isso, tentando saber mais, me fazer lembrar de mais... Então, por fim, ele me disse do que suspeitava.
— E você fez o que fez para poder dar a eles uma chance — concluiu Sunny, os olhos marejados por uma emoção estranha. Empatia, eu achava. E solidariedade.
— Tudo bem — ponderou Magnólia, antes que eu pudesse responder. — Eu entendi. De fato, você tem traços familiares. O lugar também faz sentido... Que eu me lembre, Norah era de Phoenix, então pode muito bem ter voltado para lá. Mas é uma cidade bem grande, e Smith um sobrenome comum.
— Isso não importa, Magnólia — Jeb quis freá-la, mas ela queria mais do que impressões de familiaridade e estava em seu direito. Ninguém mais precisava embarcar nessa decisão louca de assumir vínculos sem provas. E se era assim que Jeb queria, teríamos que ser francos e lidar com o estranhamento dos outros.
— Os Escritórios dos Buscadores conservam registros digitalizados dos documentos dos humanos, então seria fácil descobrir se Norah Smith era a mãe de Logan Smith, mas não seria suficiente, porque não confirmaria a paternidade, que era o que nos interessava. Então em vez disso arranjei um teste — contei.
— Bem... E? — perguntou Melanie, os olhos brilhando em expectativa.
Limpei a garganta, procurando as palavras, constrangido por confessar que não tinha uma resposta, mas Jeb não pareceu se incomodar.
— Eu disse a ele que jogasse fora.
— Como é!? — Achei que Maggie e Melanie tinham dito isso juntas, mas por certo também tinha sido a reação de mais gente. Eu só estava sobrecarregado demais para definir de quem.
— Eu não preciso disso para amar Logan como um filho. Não preciso de uma resposta positiva. E não quero correr o risco de uma resposta negativa. Ainda mais depois do que ele fez.
— Depois... Ah, não me diga! — Kyle meio que bufou, olhando para mim. — Você fez as retiradas antes de saber, antes de sequer propor o teste de paternidade ao Jeb, não foi?
— Não era mais apenas sobre Jeb — Estrela interferiu em minha defesa. —Ele precisava entender o que sentia em relação a Logan Smith também. Dar ao humano ao menos uma chance de viver essa história, de ter uma família. Você deveria entender, Kyle. Depois do que Sunny fez por você.
— Eu entendo, mas a ordem das coisas está meio invertida aí, vocês têm que admitir. Ao menos Sunny não tinha como duvidar que eu era o namorado de Jodi. Ela se lembrava. Logan não lembra de nada.
Kyle tinha um ponto. Mas a verdade era que as lembranças que importavam eram as que eu tinha daqui, do tempo com todos eles. Foram elas que me fizeram quem sou. Elas me fizeram amar e me tornaram quem sou hoje. Eram essas lembranças, e não as do passado do humano que determinavam como eu me sentia.
— Acho que, nesse sentido, concordo com Jeb — respondi. — Em que o teste mudaria o que sinto?
— Talvez não mudasse, mas... Ah, sei lá, Logan. Você não bate bem. Tem uma filha pra criar, uma filha biológica desse corpo aí, e estava disposto a abrir mão do corpo?
— Não é o corpo que me faz pai dela, Kyle. Lindsay continuaria sendo minha filha.
— Sim, mas também seria filha dele.
Eu sempre tinha respostas, especialmente para Kyle, mas não podia discutir a lógica dele desta vez. Na verdade, há muito tempo minhas decisões não eram mais regidas por lógica. Tive que aprender a abrir mão disso para conseguir colocar alguma ordem ao que eu sentia, por mais contraditório que parecesse. Contudo, como explicar isso a alguém que não fosse Estrela? Ou mesmo Sunny e Peregrina?
Como explicar o que significa a separação entre corpo e alma para alguém que só entende isso como a chegada da morte?   
— Não sei como seria. Não sei como daríamos um jeito. Vocês mesmos disseram como será difícil prever o que acontecerá em cada caso, o meu não seria diferente. Mas sei que precisava dar essa chance a Jeb e ao outro Logan. Àquele que ele era antes de mim. 
— Não existe mais nada que possa voltar a ser o que era antes de vocês, otário. Pensei que esse era o ponto.
Não raro, Kyle conseguia ter razão. Às vezes até de um jeito esmagador. Esta era uma dessas vezes.
— Sim, é precisamente o ponto que todos tivemos que aprender. Só que, aparentemente, demorou um pouco mais de tempo pra mim — concluí.
Nada podia voltar a ser o que era antes. Kyle tinha razão. Mas o fato de ser uma lição óbvia não a tornava menos difícil.
— Você não se lembra mesmo, Logan? — Peg questionou, retomando o foco. — Nem mesmo do nome da mãe de Logan Smith?
— As próprias lembranças dele eram poucas e longínquas — respondi meneando a cabeça.
— Pensei que vocês guardassem as memórias — disse Jared, em dúvida. — Ao menos as mais importantes.
— É o que acontece no começo, mas logo temos que abrir espaço para nossas próprias características, para nossas próprias vivências. E apesar dessas lembranças serem importantes para ele, não eram para mim, porque eu tinha muito com que lidar. Em minha cabeça...
Pela primeira vez, tentei verbalizar minha luta inicial com este corpo, mas era difícil encontrar as palavras, porque sempre achei indigno reclamar, desrespeitoso me lamentar, mesmo quando descobri que não era tão difícil para todos. Por isso, enterrei tudo fundo dentro de mim. Tudo. As lembranças, a dor, qualquer pesar que me lembrasse que o corpo não tinha sido sempre meu.
Então as memórias ficaram como impressões no vidro. Indiscerníveis, ainda que presentes. Como fantasmas dentro da minha mente.
— O passado de Logan não era exatamente feliz — continuei. — As lembranças mexiam com ele de um jeito ruim. E quando eu herdei tudo, tive que aprender a viver com essa espécie de bomba-relógio. Em um corpo que carregava emoções tão conflituosas que às vezes parecia prestes a explodir. Não era tão incomum, vim a saber. Muitos humanos sofriam de depressão e outros tipos de transtornos difíceis de lidar. E apesar de nossa medicina curar o cérebro rapidamente, as emoções são diferentes, mais complexas. Você tem que aprender a controlar, precisa desarmar os gatilhos. O meu jeito de fazer isso, não por acaso, foi igual ao dele: sufocando tudo. Os Confortadores achavam uma temeridade, mas eu decidi que funcionava, então “coloquei tudo numa caixa e joguei fora”. Ou achei que tinha jogado. Tentei moldar toda agressividade que o corpo me trouxe à minha própria personalidade e função e segui adiante pelos anos que vieram antes de eu conhecer vocês. Só entendi que não havia dado certo quando me arrependi pelo que fiz a Peg e a Ian.
— Você fez escolhas, Logan. A maior parte boas. Algumas fundamentais para a sobrevivência de muitos aqui. E elas são mérito e responsabilidade seus. Se me perguntar, acho que você conseguiu lidar bem com tudo. Apesar dos erros.
— Já falamos muito sobre isso, cara — Ian completou. — Não vale a pena trazer tudo à tona de volta. Não faz bem para nenhum de nós. Aprendemos a conviver e é só.
Eu não sabia o que dizer, porque muitas vezes não conseguia sentir assim. A história dos meus erros e acertos se parecia mais com uma conversa interminável que estávamos sempre resgatando, mesmo quando achávamos que estava enterrada.
Ian segurou a mão de Peg e a levou aos lábios como já tinha feito minutos antes, mas desta vez foi um gesto tão natural que fazia o amor deles parecer uma linha reta. Como se a curva perigosa que lhes impus fosse apenas uma ficção distante. Ela sorriu para ele, estendendo os dedos para tocar-lhe a bochecha de leve. Naquele breve instante, nada mais tinha importância.
E era assim que era. A vida continuava seguindo apesar da dor, por causa de momentos como esse. Esses eram nossos passos. Um momento simples após o outro.
— Nós aprendemos a conviver e é só — repeti. — Porque precisamos. Então se Jeb precisa disso, aprenderei a ser um Stryder. Vai ser uma honra.
O rosto de Jeb se iluminou:
— Não espero que vocês me entendam. Nem mesmo que se acostumem. Mas achei que mereciam saber. O que realmente espero é que compreendam que essa é uma coisa minha.
— Deveria ser uma coisa de vocês dois, não é? — Lacey questionou depois de muito tempo calada.
— O que quer dizer? — Jeb quis saber.
— Que você simplesmente decidir que tem um laço com Logan parece outra de suas imposições. Ele ao menos está de acordo com isso ou só está querendo te agradar, como está parecendo?
Eu não fazia ideia de por que ela se importava, muito menos por que decidiu falar, embora provavelmente fosse a única que tivesse essa coragem. De qualquer jeito, meu palpite era de que Lacey considerava toda e qualquer imposição como uma injustiça, e diante disso nem mesmo seu suposto egoísmo poderia se calar. Contudo, apesar da noção inédita de ser “defendido” por ela, senti necessidade de explicar que era desnecessário.
— Logan toma suas próprias decisões, Lacey — Jeb se antecipou. — Assim como todos vocês. Mas independente disso, vou continuar me comportando como o pai que ele deveria ter tido.
— Eu nunca tive a intenção de me apartar de Jeb, porque sempre o considerei como minha família. Então para mim nada muda — completei. — Estou de acordo em, como ele diz, dar um nome humano a isso.
— Que seja — ela se levantou, batendo as mãos nas pernas e depois uma na outra, como se quisesse espanar o pó da discussão. — Estou indo dormir. Se tiverem mais novidades, podem nos manter informados. Aliás... Você já está chamando Candy de “mamãe”?
Jeb teve um súbito acesso de tosse, enquanto Lacey se afastou rindo, sem esperar por uma resposta. Notei as pessoas disfarçando o riso. Observando melhor, ouvi Doc limpando a garganta constrangido, enquanto Sharon arqueava a sobrancelha numa expressão engraçada.
— Candace e eu... — Jeb começou. — Lacey está dizendo isso porque deve ter descoberto que Candy e eu nos tornamos bons amigos, mas a situação acabou evoluindo. Nós decidimos guardar para nós por um tempo, mas a verdade é que... Bom, estamos num relacionamento.
— Hum — fez Mel, assentindo com a cabeça. Os lábios apertados numa linha estranhamente cômica. — Que legal, tio.
— É, parabéns, Jeb — disse Ian. Ao seu lado, Peg estava vermelha como um pimentão.
Jeb estreitou os olhos, um sorriso de lado quis lhe fugir, mas ele se manteve sério, acusatório.
— Vocês já sabiam.
— Algumas coisas o senhor consegue esconder de nós. Outras não — Mel explicou com bom humor.
— As paredes podem ser meio finas em alguns pontos — Lily riu, dando de ombros.
— Merda! Por que não disseram nada? — Jeb esbravejou, trocando o constrangimento por uma indignação que soava muito fora de lugar.
— Porque vocês não disseram, Jebediah. Ora, pelo que mais? — Magnólia o repreendeu. — Veja só se tem graça um homem da sua idade escondendo namorico! Mas se preferiam assim, deixamos vocês pensarem que não sabíamos.
— Que diabo, Maggie!
— É isso mesmo. Nós sempre respeitamos seus segredos e maluquices, não é novidade. Logan nem de longe é a mais difícil de engolir.
— E isso, supostamente, é a maneira como você o elogia? — Jeb retrucou.
— Estou dizendo que posso me acostumar a outro sobrinho e vou. Elogios são um passo além.
— Pois eu gostei de ter um primo — disse Jamie, rindo. — Bem-vindo à nossa família, Logan.
Cruzando o espaço entre nós, Jamie estendeu a mão para um daqueles cumprimentos barulhentos e desajeitados que ele chamava de “coisa de parceiros”. Correspondi e retive o braço dele, puxando-o um pouco para mim e ameaçando desequilibrar o garoto.
— Tá bom, vai. Eu sei que você quer me abraçar. —  De pé, ele fez um gesto me chamando para me levantar também. Quando o fiz, fui subitamente enlaçado por seus braços compridos enquanto ele me batia forte nas costas, provocando risadas nos outros. — E eu não vou ser a pessoa que questiona a complicação de um primo meu ter uma filha com minha irmã.
— Nem comece! — Mel soltou uma risada. Depois olhou para mim. — Jamie gosta de ser o piadista da festa, como todos sabem. Mas estamos muito felizes por vocês. Não que mude o quanto eu já gostava de você. Só o que muda é que você agora é oficialmente o segundo melhor jogador de futebol da família.
— Ei! — Peg interviu, bem-humorada. — Pensei que a segunda melhor jogadora da família, depois de você, era eu. — Não era muito típico dela brincar, mas o clima estava especialmente atípico esta noite.
— Não, você é a primeira, irmãzinha — Mel respondeu, virando-se de volta para mim e dando uma piscadela.
Outra vez, nós rimos, e Peg lançou um beijo no ar na direção da “irmã”.
Não era mesmo muito diferente, se eu parasse para pensar. Mel, Peg, Estrela e Jamie intitulavam-se irmãos. Geoffrey e Trudy agiam como pais de Sunny. E até mesmo Lacey tinha um carinho familiar por Candy. Todos aqui eram família por escolha.
— Seja bem-vindo, primo — Melanie me abraçou, e foi muito bom recebê-la nos braços. Era a primeira vez. Ao menos fora do campo de futebol.
Discretamente, Sharon também se aproximou.
— Não sei se faz muita diferença para você. Ou se vão acreditar depois de toda a minha resistência nesses anos todos. Mas também estou feliz, Logan.
Melanie soltou um dos braços de entorno de mim e o estendeu à prima, que aceitou. Meio sem jeito, ela se encaixou entre nós em um abraço triplo.
— Acredito em você, Sharon — afirmei. — E se você me permitir, vai ser uma honra te conhecer melhor.
— Teremos tempo para isso — disse Maggie, colocando a mão em meu ombro e me cedendo o primeiro sorriso da vida.
Talvez nada disso pudesse acrescentar muito ao amor que eu já sentia por Jeb, Melanie e Jamie. Mas se podia abrandar o coração de Maggie e me tornar amigo de Sharon já tinha se provado uma boa decisão.
— É como eu disse antes — ela continuou. — Estamos juntos nessa e grudar os olhos no passado não vai ajudar ninguém. Então vamos estender nossa boa vontade ao futuro, certo? Só vamos deixar para começar amanhã, porque estou moída de cansaço e preciso dormir. Boa noite a todos.
— Boa noite, Magnólia — respondi.
Ela sorriu para mim de novo, deu um beijo no rosto da filha, outro no do irmão, e então se retirou.
— Foi um começo melhor do que eu esperava — resmungou Jeb.
— Agora te resta explicar pra Candy o flagrante que vocês levaram, garanhão — Kyle provocou, gargalhando.
Jeb limitou-se a lhe lançar um olhar seco.
— Guarde suas gracinhas, moleque. Não fiquei tão dócil quanto você está achando. Ainda te boto daqui pra fora se me irritar.
Kyle fingiu seriedade e ergueu as mãos num gesto de rendição, mas riu baixo quando Jeb lhe deu as costas.
Quando percebeu que Ian e Jared também faziam um coro baixo de risadas, o velho ficou vermelho e praguejou, mas nem ele podia conter todo mundo o tempo todo.
— Fique de boa, Jeb — disse Kyle, batendo nas costas dele. — Estamos comemorando as boas notícias. Não vai matar ninguém ter um pouco de bom humor.
— Haha — Jeb retrucou de má vontade, mas quando viu as expressões à volta, sua própria se suavizou. — Talvez eu tenha ficado só um pouco mais brando e resolva agradecer vocês pela amizade.
— Não seria mal — meu amigo ogro falou em meio a um bocejo escandaloso. — Mas acho que vou fazer como Maggie e marcar tudo na minha agenda pra amanhã.
— Acho que todos têm o que digerir por esta noite — disse Sunny enquanto se despedia.
Então ela aceitou a mão que Kyle lhe oferecia e os dois foram se deitar. Pouco a pouco, todos começaram a fazer o mesmo, parando para nos parabenizar no caminho, do mesmo jeito que fizeram quando anunciamos a gravidez de Lindsay. E, de um jeito bem inusitado, acho que a situação era mesmo parecida.
Por fim, Estrela e Jeb eram os únicos que ainda estavam comigo.
— Foi mais fácil do que vocês pensavam? — ele perguntou.
— Ao menos não tivemos que convocar um Tribunal — brincou Estrela, um tanto aliviada.
— A verdade é que, sobre a parte que nos diz respeito eles não têm mesmo o que opinar — afirmei. — Mas eu estava preocupado com como se sentiriam sobre o resto.
— É difícil pensar direito nisso quando tudo são apenas abstrações e possibilidades remotas — disse Jeb, se referindo a como eles agiriam quando estivessem mesmo frente à imagem de seus entes queridos. — Eu mesmo não sei se teria tido coragem de pedir esse sacrifício a você.
— Por isso garanti que você não precisasse.
— Sim, você é esse tipo de pessoa, filho.
— Vou até o quarto ver como está Lindsay e liberar Candy. Ela deve estar cansada — disse Estrela, beijando meus lábios e a bochecha de Jeb.
— Boa noite, Estrelinha. Obrigado por tudo — ele disse, recebendo um sorriso dela em troca.
— Já estou indo também. Daqui a pouco — garanti a ela. Então virei-me de volta para Jeb. — Você está bem?
— Excelente, filho. Por que seria diferente?
— Bem, tudo isso tem nos sobrecarregado um pouco, acho.
— O que me sobrecarregou foi ser teimoso o bastante para não conseguir dividir isso com você antes. Se tivesse, você não teria descoberto daquele jeito desastroso e teria confiado em mim antes de sair fazendo loucuras, embora eu seja grato pela consideração.
— Eu confio em você, só que...
— É o tipo de pessoa que você é, sempre querendo tomar a frente das coisas. Você é teimoso.
Ele sorria ao me dizer isso, como se achasse ao mesmo tempo incômodo e divertido.
— Desculpe — pedi. — Devia mesmo ter confiado em você.
— Somos dois desastrados.
Admirei a palavra. Fazia eu me sentir como o personagem de uma comédia. Mas acho que era isso mesmo que nós éramos. Desastrados. Parecia mais intrínseco e mais gentil do que simplesmente nos tachar de desconfiados.
— Você... — começamos a falar ao mesmo tempo, depois silenciamos.
— Diga você primeiro — Jeb pediu.
— Você fala mesmo sério quando diz que não importa o que eu decida?
— No bom sentido, sim. É claro que me importa muito, mas não vou forçar você a nada, filho. Só quero que você saiba que, em meu coração, já está decidido que agirei como seu pai. O que quer dizer, na nossa circunstância particular, que vou respeitar se você continuar me tratando como um simples amigo. Já tenho o bastante, não seria nem justo almejar mais como se não fosse o suficiente.
— Eu só tenho medo — expliquei. — De não ser o que você espera.
— Conheço você, Logan. Você sempre foi exatamente quem eu esperava.
— E eu não digo “eu te amo” com muita frequência.
— Não é considerado muito macho — ele riu. — Entendo.
— Não é isso. Almas não se importam com estereótipos. É só que, como humano, fui criado sem saber o que era isso. E nunca achei que alguém além de Estrela e Lindsay se importassem com esse sentimento de minha parte. Mas eu... Eu amo você, Jeb. Desde sempre. Você sempre foi minha pessoa de confiança.
Os olhos de Jeb ficaram vermelhos de novo, e ele desviou rapidamente o rosto para disfarçar. Depois voltou-se para mim de novo, as lágrimas caindo francamente desta vez.
—Pois eu fui criado de um jeito mais rústico, mas guardar sentimentos é outra das burrices que você me ensinou a evitar. Por isso... Embora você já saiba, eu também te amo, filho. Você. Do jeito que é.
Assenti. Acreditando. E chorei também. De alívio.
Fiquei paralisado ali ao lado dele, as mãos escondidas nos bolsos sem saber o que fazer ou o que dizer depois disso. Foi Jeb quem se moveu. E pela segunda vez me abraçou.
Deixei as lágrimas limparem minha dor e a de Logan Smith. Permiti que Jeb me amparasse e senti paz em estar vulnerável. Acho que isso era ter um pai.
Por fim, me afastei, limpando o rosto com as costas das mãos e agradecendo-o com um aceno de cabeça, desses que eu vinha usando muito quando as palavras mais óbvias me faltavam.
— Vou dormir também — me despedi. — Foi um dia cheio.
— Certo. Boa noite, filho. Até amanhã.
Boa noite, filho. Até amanhã.
Era bom ouvir essas palavras. Bom saber que amanhã o dia renasceria e não haveria mais segredos. Que os medos que existiam podiam ser enfrentados por nós juntos.
Boa noite... Filho.
Ele não diria diferente. E era bom ouvir.
Jeb merecia saber que embora certas palavras já soassem corriqueiras para ele, eu sempre as sentiria pelo valor que tinham. Ele merecia ouvir a contraparte, portanto. E se eu sempre as tinha sentido, era bobagem continuar hesitando em usá-las.
— Boa noite... pai.
A palavra deslizou por minha boca com a maciez da verdade. E, sobre os ombros, observei quando pousou como uma borboleta no coração dele.


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