Capítulo 35 – Vento da Mudança
The world is closing in
Did you ever think
That we could be so close, like
brothers
The future's in the air
I can feel it everywhere
Blowing with the wind of change
Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream
away
In the wind of change
Fords Águas Profundas
Novos paradigmas. É essa a expressão
para um processo que sempre me intrigou. Transformação. Algo que me deixa
maravilhado neste lugar.
Acho que é tão necessário quanto
respirar.
De tempos em tempos, a percepção que
nos permite vivenciar o mundo em conjunto aos nossos pares se transforma. É
assim que a vida segue, a mudança é um curso natural e esperado.
Oficialmente, as ideias sobre a
integração dos humanos remanescentes em nossa sociedade já estavam circulando
há meses agora, mas há bem mais do que isso — na verdade, praticamente desde que nossa
população se tornou maioria absoluta — muitos de nós vínhamos nos perguntando
sobre o quão justos eram nossos medos.
Humanos morriam de doenças
que podíamos curar com facilidade. Provavelmente, havia pessoas vivendo sob
condições precárias, passando inúmeras necessidades que poderiam ser evitadas.
Esses vinham sendo
os argumentos principais utilizados nas mídias para sensibilizar a população.
O que me levava a
uma questão terrível: o que isso tudo dizia sobre nós, se sempre soubemos dessas
coisas e não fizemos nada antes?
Por medo... Pelo
bem comum. De quem...?
— Nossa espécie tem
que zelar por si. E a segurança é parte essencial disso. Os humanos são
perigosos. O fato de serem minoria ainda não torna prudente nos esquecermos desse
fato — decretava Darren, meu antigo assistente, tentando ser compreensivo, mas
firme.
Eu me afligia e me
calava diante do argumento, sem ser capaz de contestá-lo habilmente, mas
sentindo em meu íntimo que aquela só podia ser uma lógica insustentável. E, no
fundo, Darren também sabia. Assim, a cada vez que tínhamos a mesma discussão,
eu me sentia capaz de demovê-lo mais um pouco da posição rígida comum à maioria
das Almas, já que, como Curandeiros, nós não podíamos nos dar a esse luxo.
Além disso, havia
outro motivo para que eu quisesse conversar sobre minhas aflições com Darren,
especificamente, mais do que com qualquer outra pessoa. Porque eu confiava
nele. Porque me importava muito com o que ele pensava. E isso já fazia algum
tempo.
Nós estávamos
juntos desde que, pouco depois de minha mudança para Chicago, ele me seguiu,
dizendo que não via sentido em manter distância quando sempre aprendia algo
comigo e gostava tanto de estar ao meu lado. A diferença de lá para cá era a
nossa percepção, nos últimos anos, de que nossa relação não era meramente
profissional. Ou apenas de amigos.
Contudo, apesar de uma
clara propensão às emoções humanas — coisa com a qual ele se adaptou bem mais
facilmente do que eu — Darren não era do tipo que gostava de pensar nas
implicações do mundo fora de sua “bolha”. A única de suas características que
verdadeiramente me incomodava, embora eu tentasse não me focar nisso. Afinal,
as qualidades eram maiores no que me dizia respeito.
— Você cobra muito
de si mesmo — completava de forma afável quando eu me indignava, como se
empatia fosse apenas um tique meu.
Bem, não é só de mim mesmo que exijo muito, eu costumava
pensar em resposta, mas não dizia nada a ele. Não gostava de perturbar suas
noções bem mais nítidas do que as minhas do que era justiça. De que adiantaria?
Contudo, com o
tempo, nossas vivências profissionais despertaram seus questionamentos com mais
eficiência do que minhas reclamações.
Nós éramos
Curandeiros, afinal. E foi onde tudo começou.
Pode ser que boa parte da população
de Almas nunca tenha precisado se confrontar com a perspectiva de extinguir um
corpo, mas os Curandeiros e Buscadores precisavam trabalhar com a possibilidade
de humanos resistentes. E se por um lado parecia óbvia a inadequabilidade de
alguém assim à nossa sociedade, além do perigo que poderia nos oferecer
enquanto indivíduos, que destino seria certo a um hospedeiro que não estivesse
apto a nos receber?
Sob a lógica humana, que nos era cada
vez mais familiar, como poderíamos considerar correto descartar um corpo nessas
circunstâncias, quando a consciência do humano ainda estava ali?
Mesmo assim, precisou ser feito inúmeras
vezes nos primeiros tempos. O afã da colonização e o bem geral de nossa própria
espécie não permitia brechas de responsabilidade. Não permitia.
Mas a paz alcançada trouxe
“fraquezas”. A vida neste planeta não nos deixaria passar incólumes. E ao nos
tornar quase humanos, nos tornamos cônscios do que o nosso “bem comum” poderia
custar.
Por isso digo que começou com os
Curandeiros.
Os Buscadores continuavam à procura
de células de resistência, atendendo ao anseio da população de que um encontro entre
uma Alma e um humano poderia ser fatal para os de nossa espécie. De sua parte,
os remanescentes se escondiam bem e não ousavam para além de suas necessidades
desesperadas, tornando as buscas mais difíceis.
No entanto, à medida que o tempo
passava, ficava também claro que, mesmo que houvessem capturas, a viabilidade desses
humanos como hospedeiros diminuía exponencialmente. Até então, tinha havido
casos raros, porém dramáticos, de resistência, e muito se especulou sobre como
o fim do elemento surpresa tinha tornado as consciências humanas mais
persistentes, nitidamente menos suscetíveis à supressão. Parecia apenas a
conclusão óbvia.
Cientes disso, os Curandeiros
começaram a se opor publicamente a mais buscas, assustados com a perspectiva de
hospedeiros resistentes. Gradualmente, ainda que de forma hesitante, os
Buscadores aderiram à nossa causa contra a captura de remanescentes humanos,
entendendo que eles não ofereciam mais ameaça direta, roubando suprimentos e
voltando a seus esconderijos.
Assim, o trabalho de nossos
protetores mudou e, em tempos recentes, seus esforços se situavam apenas em
manter vigilância redobrada nos pontos onde já havia sido detectada presença
humana, a fim de manter, dessa forma, seguras as Almas que habitavam os
arredores.
No entanto, agora, telões com
mensagens sobre paz pipocavam nas grandes cidades. Os programas de televisão
traziam debates sobre como seria o futuro, tranquilizando e informando os
telespectadores, e mídias impressas, por sua vez, não poupavam espaço para
longas reportagens que mostravam desde as atas dos Conselhos até projeções
sobre o crescimento da comunidade humana. Havia relatos de membros de famílias
mistas por toda parte, e histórias de encontros com humanos onde nenhuma ameaça
ou mal tinha sido feito, apenas a fuga desesperada de um sobrevivente
esfomeado, lutando pela vida. Essas eram as histórias que mais comoviam, então,
sabiamente, eram as mais exploradas.
De qualquer forma, depois de tanto
tempo, a comoção gerada me fez ver que nós, Curandeiros e Buscadores, não
estávamos sozinhos. Como sabíamos agora, havia Conselhos e, principalmente,
Representantes do mundo todo discutindo o futuro dos humanos. E foi por isso
que eu tinha me juntado ao Conselho de Chicago e me tornado seu Representante.
— Muito bem, caro
amigo — observou um colega Conselheiro —, nós já entendemos o plano de retirada
em massa. E também entendemos que a permanência dos que não quiserem partir
estará, de certa forma, condicionada a um consenso com os humanos integrados,
quando esta geração de nossas crianças chegar à idade adulta. Mas o problema
óbvio é a falta de hospedeiros. Esse sempre foi, de fato, o grande dilema para
todos nós. Se nosso acordo incluir a obrigatoriedade de deixar todos os nossos
filhos, a partir de agora, crescerem como humanos, nossa sobrevivência aqui se
torna não apenas restrita, mas impossível, mesmo que nossas crianças decidam
por isso.
— Impossível, não.
Efêmera apenas — corrigi. — Os tratamentos de preservação celular foram
pensados justamente para prolongar nossa permanência quando ficou claro que
havia relutância dos novos pais em entregar crianças como hospedeiros.
— Contudo, os
tratamentos apenas nos garantem mais algumas décadas.
— A mortalidade é
uma necessidade, companheiros. Nunca foi sobre nós, mas, sim, sobre salvar o
planeta. E o planeta precisa de renovação. Não é sustentável que a Terra receba
novas gerações sem que as anteriores cedam seu lugar. Além do mais, prolongamos
a vida, mas não evitamos o envelhecimento. O que significa que logo teremos um
grande contingente de pessoas que necessitarão de cuidados especiais e
descanso. Afinal, não se pode pedir a eles que continuem contribuindo com a
sociedade em um ritmo de trabalho incompatível com o de seu corpo.
— Então você está
dizendo que devemos nos conformar em partir quando o ciclo de vida de nossos
hospedeiros chegar ao fim? — perguntou outra Conselheira. — Mesmo se quisermos
ficar?
— No que me diz
respeito — respondi —, acho que a experiência da mortalidade é algo que nos
ensinou muito. A vida que levamos aqui é única em todos os aspectos
imagináveis, então respeitar seu fim natural significa também ser capaz de
valorizá-la mais. Contudo, ninguém será obrigado a se retirar. Há novas
possibilidades. Esse foi justamente o motivo para chamá-los aqui, para comunicar
o que foi discutido nas reuniões de Representantes do último mês. E depois
debater formas de melhor distribuir esse conhecimento ao público.
— Que conhecimento?
— questionou a colega.
— O de que será
possível ficar, bem como de que haverá lugar para Almas novas que quiserem
habitar este planeta, conforme for nosso acordo com os novos humanos.
— Mas como? Você
acabou de dizer que teremos que concordar em conservar todas as crianças
humanas. Como seria possível sequer cogitar a chegada de novas Almas depois que
partirmos?
— Certamente, vocês
estão a par das tecnologias que os humanos já desenvolviam antes de nossa
chegada. Nossos irmãos cientistas do mundo todo têm trabalhado para aperfeiçoar
trabalhos como os dos pesquisadores de São Francisco, por exemplo, que já eram
capazes de criar carne comestível a partir de simples células.
— Sim, é claro — confirmou
o Conselheiro Ramos Flamejantes. — Isso resolveu a questão da fome, tornou a cruel
criação para abate desnecessária e, por fim, resolveu a crise hídrica iminente
que os humanos enfrentariam pela má administração do agronegócio. Foi a
pesquisa que nos garantiu a salvação do planeta, a prova maior da inteligência
dos humanos. Em nossas mãos, isentas de interesses políticos e corruptos, foi a
própria criação deles que salvou a Terra.
— Fantástico,
fantástico — diziam alguns em burburinho, relembrando.
— Ainda assim — Andarilha
das Nuvens, a Conselheira que tinha me questionado antes, retomou —, por mais brilhante
que seja essa tecnologia, o que tem a ver com a questão dos hospedeiros?
— Bem, acontece que
não ficou restrita à produção de alimentos. Desde que tomamos consciência da
escassez de novos hospedeiros, os cientistas têm trabalhado ativamente na
aplicação de técnica semelhante para a criação de tecidos vivos. E o resultado
é que eles já conseguem.
As respirações
ficaram suspensas por um segundo inteiro, mas aquela era uma reação a que eu já
estava me acostumando, depois de inúmeras discussões entre os Representantes. O
fato era que a ciência nunca se tornava previsível. E ouvir aquilo pela
primeira vez, certamente amplificava o efeito, porque já tinha havido conversas
prévias a respeito. Embora eu tenha sido pouco específico, sabia que o Conselho
entendia para onde estava indo o raciocínio.
— Não são clones —
esclareci. — O material genético de origem vem de embriões congelados das
antigas clínicas de fertilização in vitro
dos humanos. Portanto, estamos falando de perfis únicos.
— Mas isso não faz
sentido, amigo Fords — interviu Ramos Flamejantes. — Quer dizer, é fantástico,
cientificamente falando. Uma grande realização. Contudo ainda vai de encontro à
promessa de manter as crianças humanas. Porque quer sejam criados em
laboratório quer não, o hospedeiro desenvolvido a partir desses embriões ainda
precisará ser cuidado por alguém até atingir a idade necessária para uma
inserção. Isso os colocará na mesma condição dos humanos nascidos por vias
comuns.
— Sim, tem razão,
Ramos. Seria, de fato, assim, mas há um diferencial importante. Os hospedeiros
serão criados em idade adulta para o caso de Almas que já habitam a Terra. E em
versões mais jovens para aqueles que virão pela primeira vez. Crianças maiores
a serem adotadas por famílias dispostas a tal. Não haverá gestação ou o período
de cuidados com os bebês que permite que desenvolvam uma personalidade que os
pais sentirão necessidade de proteger. Não haverá tomada de consciência antes
da inserção. Desse modo, os hospedeiros serão puros, criados apenas quando
requeridos para uso imediato.
O burburinho
recomeçou, e meus colegas discutiam entre si em pequenos grupos. Normalmente,
meu papel como mediador da conversa exigiria que eu os lembrasse de que as atenções
podem dispersar, mas devemos sempre voltar ao foco coletivo. Entretanto, hoje,
preferi deixá-los voltar naturalmente, depois de esgotada a primeira onda de
comentários entusiasmados e dúvidas.
— Isso é tão instigante
quanto controverso, eu acho — disse Ramos. — Vida artificial, quem diria?
— E nos permitirá
viver para sempre, completamente sem riscos — observou Andarilha das Nuvens, ao
que outros Conselheiros torceram os narizes sutilmente. — Sim, eu sei, não é
recomendável... — completou.
— Usufruir de mais
de uma vida neste planeta nos daria uma vantagem injusta em relação aos humanos
— expressou Ramos.
— Não que fôssemos
usá-la para acumular bens ou posições sociais — ela retrucou.
— E, contudo, se
queremos uma sociedade de fato igualitária com os humanos, não podemos nos
furtar a abraçar a mortalidade. É parte da experiência — Ramos completou, ao
que todos aquiesceram.
— Além do mais —
disse eu —, para os que fazem parte de famílias mistas seria muito sofrimento
sobreviver aos seus indefinidamente. Mas pelo bem do nosso livre-arbítrio, a
possibilidade estará garantida a quem quiser. Mesmo assim, sabemos que a
maioria agirá pensando no bem comum. Afinal, a superpopulação traria danos
novamente ao planeta.
— O planeta é mais
importante, definitivamente — falou Andarilha. — Justamente por isso gosto da
possibilidade de poder estar aqui para zelar por ele, se for necessário. Não
confio plenamente nos humanos, nem mesmo naqueles que estão sendo criados por
nós.
— Não controlamos o
futuro, cara colega, mas corrigimos erros do passado contra a natureza e agora
estamos trabalhando para construir um presente harmonioso. Há de correr tudo
bem.
— Assim espero.
Estamos todos aprendendo com a experiência — ela me respondeu, demonstrando uma
dose saudável de boa vontade para temperar os receios.
“Há de correr tudo
bem”, repeti para mim mesmo, enquanto o Conselho de Chicago, provavelmente ao
mesmo tempo que muitos ao redor do globo, avaliava todos os aspectos da
situação e considerava maneiras próprias de levar a notícia à sua comunidade.
********
— Como foram as
coisas? — perguntou David do outro lado da tela do telefone celular.
Nos reuniremos com
outros Representantes amanhã, em vídeo conferência, mas gosto de me antecipar e
conversar diretamente com ele antes. Seu equilíbrio e sensatez foram inspiração
desde que nos conhecemos, apresentados por Peregrina, meses atrás.
— A
imprevisibilidade de tudo os deixa um pouco relutantes — confessei. — Mas todos
entendem a necessidade de acolhermos os humanos, principalmente suas crianças.
A longo prazo é o melhor a se fazer por todos nós. Não podemos deixá-las
receber uma educação precária.
— Os pequenos John
e Lindsay são encantadores e têm mais a nos ensinar do que a aprender — ele
reconheceu. — Mas admito que, hoje em dia, me preocuparia muito saber que
existem crianças sendo criadas por humanos amedrontados o suficiente para se
tornarem perigosos. Sem falar na debilidade de sua condição de vida em geral
nos esconderijos.
— De fato —
confirmo. — É um alívio, porém, saber que essas crianças, em específico, junto
aos adolescentes da mesma célula, têm uma outra vivência em relação a nós.
— Sim, o que
Peregrina e os outros fizeram, abandonando tudo em favor dos humanos, foi
realmente ímpar e de valor inestimável. Temos muito que extrair das
experiências deles.
— Sempre soube que
ela era especial — digo, me lembrando de quando eu mesmo a vi despertar na
Terra, ainda que em um corpo diferente do que se encontrava agora. — Mas não
fazia ideia do quanto Melanie também era.
David sorriu,
concordando.
— Ouvi dizer que
conhecê-la foi um grande motivador para que aderisse à nossa causa.
— Elas sabem ser
convincentes — ri e David me acompanhou, já que ele mesmo teve a oportunidade
de testemunhar o quanto.
A comunidade de
Picacho Peak chegou a ele antes de chegar a mim, mas ambos pudemos conhecer
suas táticas sorrateiras e habilidades de persuasão.
Comigo foi há pouco
mais de seis meses.
Eu já era um
Conselheiro quando uma colega Curandeira me procurou. Estávamos em um congresso
onde eu dissertava sobre técnicas de renovação dos telômeros das células
somáticas e ela me convidou para um almoço, supostamente para sanar dúvidas que
tinha sobre meu trabalho.
No telão do
restaurante, uma propaganda pró-humanidade chamou minha atenção e ela percebeu.
Começamos a conversar a respeito. Em pouco tempo, percebemos muitas afinidades
ideológicas. Então, de súbito, a mulher chamada Estrela me disse:
— Preciso confessar
que eu já previa que nossos pensamentos se alinhariam. Vim especificamente até
você sob recomendação da minha irmã. Talvez você se lembre dela, foi você quem
lhe deu o nome de Peregrina.
Peregrina.
A Alma mais
impressionante que eu já tinha visto, viajante de quase todos os mundos
conhecidos. Designada para a tarefa de encarar as dolorosas lembranças da
humana rebelde que tinha preferido o suicídio.
É claro que eu me
lembrava.
Imediatamente, a
imagem do corpo maltratado da garota hospedeira me veio à mente com uma pontada
de comoção. Eu tinha passado dias trabalhando em seus ossos quebrados e órgãos
prestes a falir. Jamais poderia esquecer.
— Peregrina é a favor
do acolhimento aos resistentes? — perguntei, mas não podia dizer que estava
surpreso.
Céus, eu só podia
supor o tipo de memórias terríveis com que teve que lidar! Admirável Peregrina.
— Não apenas ela,
mas também Melanie — ela me mostrou uma foto em seu celular.
Uma garota loira,
jovem e delicada com um bebê de imensos olhos azuis no colo e, abraçada aos
dois, estava Peregrina.
Apreciei os traços
de todos por alguns segundos, sem me espantar que a criança fosse humana, mas
foi então que notei. Os olhos. A moça morena também não era uma Alma.
— O que... Essa é
Peregrina, mas...
— Nós a chamamos de
Peg agora — Estrela disse sorrindo. — Nossos amigos humanos acham mais
familiar. Esta é Peg com seu filho John — explicou, apontando para a garota
loira. Em seguida, apontou para a morena. — E esta é Melanie, nossa irmã.
Nas horas que se
seguiram, Estrela me contou a história fantástica de como Melanie Stryder, que
ela agora chamava de Mel, tinha permanecido consciente depois da inserção. E de
como Peregrina, movida pelos afetos da outra, tinha comprometido a própria
segurança para garantir que a Buscadora não chegasse até os entes queridos de
sua hospedeira.
Contou também sobre
tudo o que tinha acontecido depois, e sobre como ela mesma tinha tido
sentimentos tão fortes que a levaram para o exato mesmo caminho de Peregrina,
principalmente por carregar o pequeno John em seu ventre. Filho de Peg com um
humano fugitivo.
Espantosa
Peregrina. Apesar de tudo, eu nunca poderia prever o quanto.
Eu não sabia o que
dizer, não sabia como podia ajudar ou como devia reagir. Então Estrela me levou
até as duas. E foi Melanie, a garota mais destemida que minha mente jamais
poderia conceber, quem me tocou profundamente a favor da causa.
— Melanie me fez
ver que é totalmente inadmissível que jovens como Jamie vivam num limbo entre
dois mundos. Ele, junto com Kate, Isaiah e Liberdade eram apenas crianças
quando tudo começou, mal têm lembranças de como é não estarem escondidos.
— De fato, as
crianças também me preocupam especialmente — disse David. — Mas todo o resto da
situação precisa ser corrigida. Precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso
alcance.
— O que me preocupa
é o que não está ao nosso alcance, ou seja, o que depende dos humanos. Muitas
Almas temem, justificadamente, que eles possam nos causar problemas. E não há
argumentos contra o fato de que eles podem, sim, ser violentos.
— Realmente, não
temos garantia alguma. Por isso é preciso estarmos cientes de que esse é um
risco que teremos que correr. Contudo, não podemos espalhar o pânico entre os
nossos. Mas, sim, lembrá-los de que os novos humanos fazem parte da nossa
comunidade. De qualquer jeito, temos que nos adaptar à sua imprevisibilidade
natural. Portanto, não seria aceitável permitir que os sobreviventes continuem
no ostracismo. Além disso, precisamos confiar no trabalho dos humanos que já se
dispuseram a empregar seus esforços em prol desse acolhimento. Como Doc,
Sharon, Melanie e o companheiro de Peregrina, por exemplo.
— Outra grata
surpresa — afirmei, lembrando do rapaz ponderado e gentil que eu tinha
conhecido há pouco tempo. — Ian é muito equilibrado e convincente. Apenas não
estou certo em relação ao irmão dele.
David gargalhou.
— Entendo — disse. —
Mas Kyle tem uma vivência interessante com as Almas, já que também é casado com
uma. No que diz respeito ao trato com humanos, desconfio que ele possa ser tão
persuasivo quanto o irmão, embora de uma maneira diferente e própria.
— Essa é outra
coisa também. Eles todos têm personalidades tão distintas que me deixam tonto,
mas acho que leques diferentes de habilidades, neste momento, podem ser mais
produtivos do que nossa passividade habitual.
— Concordo com
você. É apenas uma questão de adaptação para todos nós.
— Sim, para todos
nós — concordei. — Estamos fazendo nosso melhor, não é?
— Estamos, sim — David
confirmou.
Respirei, tenso e
aliviado ao mesmo tempo. Mas predominantemente esperançoso pelos ventos da
mudança.
Novos paradigmas.
Transformação. A essência que tanto me encantava na Terra. Finalmente, eu iria vivê-la
em sua plenitude. Graças a um grupo particularmente peculiar de humanos e das
Almas que os amavam.
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