Capítulo 36 - O Tempo
dos Outros
You shut your mouth
How can you say
I go about things the wrong way?
I am human and I need to be loved
Just like everybody else does
How can you say
I go about things the wrong way?
I am human and I need to be loved
Just like everybody else does
(…)
When you say it's gonna happen "now"
Well when exactly do you mean?
See I've already waited too long
And all my hope is gone
Well when exactly do you mean?
See I've already waited too long
And all my hope is gone
Ian
Começou até que devagar.
Primeiro, Andy e Paige se mudaram
para a unidade de Tucson dos Víveres para a Humanidade. Eles tinham que cuidar
do armazém, mantê-lo limpo, organizado e fazer o possível para que que os
humanos que aparecessem não sentissem medo de que fosse uma armadilha.
Não era bem o procedimento usual,
porque, nesse ponto, ainda havia mais unidades do que humanos para tomar conta
delas. Ainda eram poucas as células localizadas que já viviam abertamente entre
as Almas.
Por isso a maior parte dos armazéns não
tinha “zeladores residentes”, somente uma equipe regular de Almas que, sob a
proteção dos Buscadores, cuidava da manutenção de tudo. Mas quando Andy e Paige
quiseram se mudar para Tucson, o responsável pela organização dos Víveres, que
por acaso era nosso amigo Jared Howe, achou uma boa ideia. Caso houvessem
humanos remanescentes pelas redondezas, certamente se sentiriam mais seguros
com Andy e Paige por perto.
Era uma espécie de consenso: ao menos
a princípio, humanos se dariam melhor com humanos. Por isso tentávamos formar
equipes mistas de abordagem. Para quando aparecesse alguém para abordar, o que,
de fato, estava começando a parecer que não seria tão frequente assim. Na
verdade, além de nós e do pessoal das células já conhecidas desde a época em
que Nate nos encontrou, não apareceu ninguém novo na região.
De qualquer forma , estávamos todos
procurando um papel, uma forma de ajudar no processo de integração.
Assim, logo depois da partida de Andy
e Paige, Lucina também se mudou com os filhos para o antigo lar de Estrela e
Logan em Nova Orleans. O objetivo era ajudar Flora, que viu a necessidade de uma
perspectiva humana no Conselho.
Junto com Isaiah e Liberdade, que
enfim estavam tendo a chance de estudar, Lucina também teve a ideia de falar
nas escolas, educando as crianças sobre a integração dos humanos da “antiga
geração”, como ela passou a chamar os remanescentes. Flora comprou a ideia de
bom grado e as duas têm trabalhado muito desde então, fazendo planos para
implementar o projeto em outas cidades.
Heidi também se mudou, mas preferiu ir
para um dos armazéns, junto com alguns membros das outras células. Um pequeno
condomínio se estabeleceu na unidade do Víveres de Scottsdale e, embora não
seja a intenção que os humanos vivam isolados, a escolha deles tem sido
respeitada e vista como um passo válido para a reintegração.
Quanto ao resto de nós, continuávamos
onde estávamos. O que parecia bem esquisito, era preciso admitir, considerando
que não havia mais necessidade de nos escondermos.
Era só que, bom, depois de tanto
tempo, esses lugares por vezes precários onde nos refugiamos tinham se tornado
nossos lares. E não era fácil ver as pessoas partirem, mesmo que fosse para perto.
Mesmo que fosse para uma vida finalmente livre.
De qualquer forma, reuniões e visitas
esporádicas não seriam a mesma coisa. Por isso seria necessário um tempo para
aceitarmos que a mudança era para melhor.
“Deixa só a gente voltar a se
acostumar com o conforto da civilização”, disse Brandt, dando risada. “Meu
Deus, que falta me faz um chuveiro!”
“Pipoca de micro-ondas e tv”,
acrescentou Lily. “Mesmo que sejam aqueles programas insossos que dizem que as
Almas fazem agora. Quem sabe a gente poderia ensiná-los a fazer umas coisas
mais empolgantes!”
“Hum, já que você falou em
micro-ondas”, Trudy opinou, “o que eu não daria por uma geladeira!”
“Com sorvete dentro, claro”, Geoffrey
entrou na brincadeira, enquanto outras pessoas falavam de coisas como cinema,
frutas frescas, neve, praia...
Foi uma conversa divertida, mas que
não nos deixava mais ignorar o quanto nossa vida nas cavernas era limitada. Mesmo
assim, ainda não era fácil simplesmente decidir sair.
Enquanto isso, nos contentávamos em transitar
pelas cidades próximas, na tentativa de sentir a recém-adquirida liberdade e
nos naturalizarmos com ela.
Os humanos que aceitavam fazer parte
da nova sociedade, como era nosso caso, usavam pequenos chips sob a pele do
pulso que brilhavam contra a luz, como uma minúscula tatuagem de padrão único.
Isso queria dizer que tínhamos assinado termos de responsabilidade onde nos
comprometíamos a não portar armas, não fazer mal às Almas ou praticar qualquer
ato de depredação ou poluição.
Era simples, eficiente e nos garantia
passe-livre por todas as cidades, mas tinha sido uma medida meio impopular a
princípio. Ser marcado “como gado”, tal como dizia Kyle, podia soar meio
ultrajante para alguns, mas era um preço pequeno a pagar e eu entendia.
As Almas precisavam de garantias, era
compreensível.
Todo o necessário foi feito para que aqueles
que optassem por continuar no ostracismo tivessem o mínimo necessário. Os
armazéns distribuídos por várias estradas continham todo tipo de mantimentos
não perecíveis, suplementos vitamínicos para suprir a falta dos perecíveis,
móveis, ferramentas, combustível, roupas, cobertores e remédios com instruções
de uso escritas de forma simples e precisa. Além disso, mensagens em cada
unidade deixavam claro que qualquer emergência médica seria livremente atendida
nas Instalações de Cura.
Contudo, sem assinar o termo,
qualquer humano que fosse pego circulando por áreas habitadas por Almas seria
prontamente capturado pelos Buscadores e reconduzido a seu lugar de origem, que
agora os Escritórios andavam mapeando com interesse renovado.
Lacey, como era suposto, juntou-se aos
Buscadores de Washington DC e, coordenadas com todos os estados, as equipes que
ela ajudou a montar procuravam por outros grupos de humanos. Recentemente,
localizaram algumas pessoas no Kansas e Kyle e Sunny foram designados para ir
até lá, enquanto Peg e eu fomos para outro foco em Salem.
Depois de um dia de planejamento
estratégico no Escritório de Buscadores da cidade e empolgados com nossa primeira
missão, deixamos John aos cuidados da escola local e nos juntamos aos Buscadores
designados para nossa proteção. Entretanto, a tarefa não era simples como fazia
parecer nossa animação.
A família que fomos ver foi difícil
de achar, porque estavam bem adaptados ao nomadismo. Os Buscadores tiveram que
triangular o movimento das manadas de cervos que eles caçavam para conseguir
uma localização provável. E quando encontraram os quatro integrantes do grupo,
além de uma matilha de seis cachorros, num acampamento escondido, a aproximação
foi complicada.
Era bastante tolo da minha parte
nunca ter suspeitado que os Buscadores, graças a dados pré-invasão e à
colaboração de familiares deixados para trás, tinham uma espécie de
levantamento de quem poderiam ser os humanos fugitivos em cada cidade. Mas,
obviamente, para minha leviana surpresa, eles tinham. E segundo esses dados, suspeitava-se
que o único homem do grupo era Tyler Roarke, ex-marceneiro e caçador,
acostumado à vida na floresta. E as mulheres, provavelmente, eram sua mãe, irmã
e esposa.
Pelo que tinha sido observado, Tyler
e a irmã Josie eram exímios atiradores, capazes de nos alvejar à distância, bem
antes de eu poder mostrar a eles que era humano também. Se fossem abordados
diretamente por Peg ou por qualquer um dos Buscadores então, seria morte certa,
por isso não dava nem pra pensar na possibilidade.
Quase fiquei doente com a ideia de
expor minha mulher a isso, mas havia uma boa estratégia, afinal.
Na verdade, foi quase cinematográfico.
Um drone sobrevoou o acampamento
dispersando uma nuvem de Dormir. No mesmo instante, a família inteira e até os
cachorros foram ao chão. Peg achou hostil amarrá-los e convenceu os Buscadores
que a abordagem já soaria suficientemente violenta sem essa medida, por isso
tive que me contentar em revistar pessoalmente cada um deles, me livrando de
facas e armas de fogo, garantindo que daria conta de contê-los fisicamente se
reagissem. Depois prendi os cachorros, por via das dúvidas, antes de borrifar o
Acordar apenas no rosto dos humanos, um a um, começando por Tyler.
Como era de se supor, ele bufou feito
um animal quando acordou, e partiu para cima de mim. A certa distância, como eu
tinha exigido para a proteção de Peg, os Buscadores ameaçaram uma reação, mas
eu os detive com um gesto de mão. Já tinha dito que podia com Tyler, e podia
mesmo.
— Viemos em paz —
declarei quando o contive, o que podia parecer meio difícil de engolir, com meu
braço em torno da garganta e de um dos braços dele. — Sou humano, olhe! Olhe!
Num movimento estranho, consegui,
graças ao fato de ser bem mais alto que o cara, virar o rosto dele para cima de
forma que enxergasse meus olhos. Ele parou de espernear depois disso, parecendo
meio confuso.
— Se quiséssemos capturar
vocês, já teríamos feito, mas viemos apenas conversar. Depois iremos embora e
você não precisará nos ver outra vez se não quiser. Mas acho melhor...
Uma pancada nas costelas me
interrompeu. Culpa minha. Relaxei um pouco, achando que ele não resistiria mais,
e o filho da mãe conseguiu soltar o braço que eu segurava para trás com minha
outra mão e me acotovelar. No entanto, eu não seria burro duas vezes.
Prevendo que ele tentaria alcançar o
coldre vazio, foi para lá que direcionei minha mão e capturei de volta a dele,
torcendo-a com força. Ele ganiu através dos dentes trincados, sufocando a dor e
a raiva, então afrouxei a torção no pulso e o aperto no pescoço para que ele pudesse
respirar melhor, mas ainda o mantive preso
Os Buscadores estavam claramente
agitados e, atrás deles, consegui enxergar, mesmo à distância, as lágrimas de
angústia se formando nos olhos de Peg.
Praguejei internamente, mas me
mantive firme. Não podia me dar ao luxo de me distrair pensando em formas de
poupar sua sensibilidade. Por mais que quisesse.
Eu odiava o fato de Peg estar ali. Odiava
que tivesse que me ver agindo de forma violenta e que sentisse medo por mim. Odiava,
acima de tudo, a sensação de saber que, naquele momento, ela sentia medo por
Tyler também, do que ela sabia que eu poderia fazer com ele. Mas não dava para protegê-la
sempre de quem nós éramos.
Humanos eram previsíveis numa coisa:
estávamos dispostos a tudo para proteger quem ou o que nos importava. Em
situações assim, agíamos sobretudo por medo. E o medo não era um bom
conselheiro.
Eu acabaria com Tyler se fizesse
algum mal a Peg. Ou se me desse motivos para temer isso. E se ela estivesse
aqui à frente dele, procurando lidar com um homem desses através de uma simples
conversa, não tinha dúvida alguma de que ele tentaria machucá-la. Porque,
naquele momento, tudo o que ela representava era entendido por ele como ameaça.
Sabia disso porque já tinha estado
onde ele estava, já tinha sido o sobrevivente desesperado que só enxergava o
inimigo. E, por causa desse sentimento brutal, já fui o algoz daquela que daria
minha vida agora para proteger. Assim, eu sabia que essas sensações não mudavam
sem que a gente esclarecesse a verdadeira natureza delas.
Estava bem ciente disso.
Dolorosamente ciente. E precisava que Tyler e sua família também estivessem,
antes de qualquer coisa. Então virei o corpo dele de frente para Peg, para que enxergasse
o brilho prateado nos olhos dela, e disse próximo a seu ouvido.
— Está vendo aquela
garota loira? — Com dificuldade, ele assentiu e eu continuei, minha voz apenas
um fio rouco da mais sincera ameaça. — É a minha mulher e ela veio aqui para
tentar ajudar você e sua família. Ajudar. Porque ela é uma Alma, e é isso que
ela faz. Mas eu sou como você, sou um homem que defende os seus. Ela é uma
Alma, mas eu sou humano. Você sabe o que isso significa. E tão certo quanto
você tentou puxar sua arma contra mim, se fizer algo mais do que olhar torto
pra ela, quebro seu pescoço aqui mesmo.
Esperei até que ele
absorvesse todas as minhas palavras, uma por uma. Depois amenizei um pouco o tom
e continuei.
— As outras Almas
são Buscadores treinados. Se você reagir, se tentar me bater, se fizer algum
movimento brusco na
direção de qualquer um de nós, eles vão atirar e não vão errar. Você não vai
morrer, a munição não é letal, mas vai doer como o inferno. Eu já levei um tiro
desses e posso te garantir que você vai preferir não passar pela experiência. O
mesmo vale para sua família. Se mesmo assim você quiser se arriscar, lembre-se de
novo de que eu não sou uma Alma. Eles só estão aqui para conversar, eu também,
mas mato você se precisar. Entendeu? Responda! — Usei meu joelho para atingir a parte de
trás da perna dele quando não disse nada e seu corpo oscilou com o choque. —
Preciso saber se você vai aceitar meus termos. Se vai ouvir pacificamente o que
minha mulher e eu temos a dizer.
— Parece que não
tenho muita escolha, não é? — ele falou pela primeira vez.
A voz estava rouca
e o corpo continuava tensionado, mas as palavras abriam uma pequena e sofrível brecha
para o diálogo. Se eu conseguisse parar de parecer um bicho rosnando, talvez
ele se tornasse mais amigável também.
— Retirei todas as
suas armas e as de sua família, mas foi apenas para garantir que vocês não nos
ferissem. Não tenho intenção de fazer mal a elas ou a você, assim como os
Buscadores não estão aqui para capturá-los. Eles não têm interesse, porque há
anos as Almas perceberam que os resistentes como nós são hospedeiros inviáveis,
então eles resolveram nos deixar em paz. Dou a minha palavra de que viemos
apenas conversar e de que iremos embora em seguida. Se vocês não aceitarem
nossa proposta de convívio, não voltaremos mais. Ninguém vai importuná-los.
— Ok — ele
respondeu relutante, embora desse pra ver que não confiava em mim. Contudo,
Tyler parecia ser daquele tipo para quem a palavra de um homem valia alguma
coisa, então imaginei que estivesse se esforçando.
— Vou te soltar e
acordar as mulheres, deixando Josie por último, já que, depois de você, ela é a
ameaça maior. — Assim que deixei
escapar o nome da garota, percebi que, sem querer, tinha conseguido uma
vantagem que poderia manipular, porque Tyler não conseguiu disfarçar a surpresa
por eu saber o nome de sua irmã e isso surtiu um efeito estranho. De certa
forma, me colocou num patamar de superioridade, porque ele realmente não sabia mais
o que esperar de mim. Resolvi então tirar proveito disso para ganhar um pouco
de confiança. — Sim, Tyler, sabemos quem vocês são e por onde têm andado, mais
uma prova de que se os Buscadores quisessem levá-los já teriam feito isso há
muito tempo.
Soltei-o em seguida, e ele se afastou
de mim num salto, examinando insistentemente meus olhos e flexionando o pulso
dolorido pela torção, testando os movimentos.
— Vou acordá-las,
mas, por garantia, seus cachorros vão dormir mais um pouco. Asseguro você de
que todos ficarão bem e que não tenho nenhuma intenção de fazer mal, entendido?
— Tudo bem, vou colaborar.
Como eu disse antes, não tenho escolha. Mas é bom que você tenha em mente que o
mesmo que disse sobre ser um homem que protege os seus, seja lá o que te faz
chamar de seus essas... coisas, também
vale pra mim. Também mato vocês com minhas próprias mãos se descumprirem suas
promessas. Teremos uma guerra aqui. Porque se as armas deles não são fatais, o
mesmo não posso dizer das minhas intenções se me ameaçarem. Não preciso das
armas que você escondeu pra provar isso.
“Quero ver você tentar, chapa!”, foi
o que tive vontade de dizer, mas Tyler só estava cantando de galo, tentando
amenizar o fato de ter se rendido, o que para ele devia ser uma grande
humilhação. Agora que tinha retomado um mínimo de controle da situação, provavelmente
precisava sentir que era capaz de fazer algo com isso, embora eu desconfiasse
de que, no fundo, ele sabia que as ameaças eram tão úteis quanto qualquer
bravata.
— Vou borrifar essa
substância no rosto delas. É o mesmo que usei em você, então lembre que não faz
mal algum. Você me apresenta e explica a situação a cada uma, devagar porque
pode ser que estejam um pouco desorientadas no começo. Além disso, é melhor que
ouçam de você. Explique bem as regras de segurança — orientei, deixando claro
através do tom mais incisivo que as ameaças que fiz continuavam válidas. — Faça
como combinamos e todo mundo vai ficar bem.
Devagar, uma a uma, as mulheres da
família Roarke foram despertadas por mim e esclarecidas por Tyler. A primeira foi
a mãe, Diana, que parecia a mais assustada a princípio, mas depois passou a
olhar para as Almas com um toque de curiosidade passiva.
Jane, a esposa, se mostrou bem mais
relutante. Dava para perceber pela postura defensiva, que ela compartilhava com
Tyler a repugnância com que ele se referiu às Almas.
“Coisas”.
Tentando não pensar nisso, acompanhei
com atenção renovada o despertar de Josie que, como eu esperava, se mostrou
mais combativa. Quase obsessivamente, olhou insegura e com raiva de mim para
Tyler muitas vezes enquanto ele explicava a situação, e depois me lançou um
olhar de puro asco quando eu disse que agora que Peg já tinha segurança para se
aproximar, podíamos iniciar nossa conversa.
— Esposa? — bufou
quando ouviu a maneira como me referi a Peregrina. — Mas que merda! Como é que ele
pode considerar uma coisa dessas como uma mulher? — resmungou para a mãe que
tentava fazê-la se calar, porque percebeu que da parte de Josie havia pouca preocupação
de que eu ouvisse.
Optei por ignorar.
Se eu não fingisse demência naquele momento, ia acabar esganando a “doce” Josie
Roarke. Aí então, com certeza, meu lugar nas equipes de negociadores da paz
estaria seriamente inviabilizado e Peg teria que lidar sozinha com tipos como
aqueles. Além disso, felizmente, ainda me restava decência o bastante para que
não fosse tão fácil agir de forma agressiva com uma mulher.
— Esta é Peregrina,
minha esposa, mãe do meu filho — falei, olhando de forma insolente para Josie
enquanto passava o braço protetoramente em torno de Peg.
— Filho...!? —
Josie quase cuspiu a palavra, engolindo as outras em seguida por causa de um
gesto contido da mãe. Mas a cara de nojo era de quem tinha engolido viva uma
barata. — Como foi que vocês...? Um filho. Como foi que isso aconteceu?
— Como fizemos um
filho? — ironizei, incapaz de me conter. — Achei que essa parte fosse a mais fácil
de entender.
Foi Diana, a mãe,
quem tentou apaziguar a situação, olhando para Peg e percebendo seu desconforto.
Parecia que, apesar de tudo, ainda restava bastante sensibilidade àquela mulher.
— Desculpe se a
pergunta soou errada — disse ela, direcionando o olhar para Peg, mas fixando-o
em mim depois. — O que queremos entender é como foi que vocês se envolveram,
uma Alma e um humano. Como foi que você terminou entre eles, rapaz?
Eu tinha certeza de
que Josie tinha querido dizer exatamente o que insinuou, e as expressões jocosas
de Tyler e Jane só me confirmavam isso. “Como foi que você se rendeu aos
parasitas?”, era a pergunta real. “Como teve coragem de dormir com uma delas e
fazer um filho?”
Peg segurou minha
mão com força, e foi então que percebi que tinha me adiantado um passo e me
posto à frente dela de forma defensiva. Mas era um ato tão mecânico quanto tolo.
A Alma Peregrina estava acostumada a humanos imbecis. O que não queria dizer
que eu precisasse gostar disso.
No que dependesse
de mim, os mandaria à merda e deixaria apodrecer na floresta, se não queriam
nossa ajuda. No entanto, era preciso lembrar que ao menos Diana parecia merecer
um pouco de compreensão e paciência.
— Na verdade, fui eu
que me meti entre os humanos — explicou Peg docemente. — Quando cheguei neste
planeta, fui colocada em uma hospedeira recém capturada. O nome dela era
Melanie. O objetivo era encontrar outros humanos fugitivos como ela e, através
de suas lembranças, pude informar à Buscadora que me acompanhava sobre a
existência de uma criança, seu irmão mais novo, e de um companheiro. Mas a
consciência de Mel não foi suprimida. Ian já contou a vocês sobre os
hospedeiros resistentes que fizeram as Almas desistirem das buscas, mas naquela
época, eu não sabia que isso era possível. Era só... assustador demais para que
eu conseguisse falar a respeito. De qualquer maneira, mesmo depois que entendi
o que estava acontecendo, fui incapaz de entregar a verdade sobre Melanie.
Também me apeguei ao garotinho e ao homem de suas lembranças e deixei que ela me
convencesse a protegê-los. No esconderijo onde os encontrei, conheci Ian e
outros humanos, mas quando cheguei, todos me odiavam. Com o tempo, enquanto me fizeram
prisioneira, perceberam que eu só queria ajudar. Ian e eu nos tornamos amigos e,
depois, mais do que amigos. Mas Mel ainda estava ali e eu não podia viver um
amor que não era dela em uma vida e em um corpo que, sim, lhe pertenciam e me
empurravam para outra direção. Então ensinei a um dos meus amigos como me tirar
dali e libertar Mel.
— O quê? — Jane se
manifestou pela primeira vez. — Isso é possível?
— No nosso caso,
era — respondeu Peregrina. — Porque a consciência dela tinha sobrevivido junto
à minha.
— E como é que você
está aqui? — Tyler questionou.
— Nós não íamos
permitir que Peg morresse. Então Melanie, o namorado e o irmão dela roubaram o
corpo de outra Alma, invadiram um hangar e colocaram essa Alma retirada em
hibernação dentro de uma nave que seria mandada a outro planeta — resumi,
observando a inquietude surpresa com que se entreolhavam. — Mas entendam que
não é um erro tático nosso lhes contar sobre essa possibilidade. Todos os
envolvidos no processo de paz optaram pela absoluta honestidade, o que inclui
também dizer que a retirada de uma Alma, depois de tantos anos, tem uma
probabilidade esmagadora de falhar. Dois dos nossos amigos já tentaram. Uma
delas, anos atrás, e o outro mais recentemente. E o fato é que não foi possível
em nenhum dos casos.
— Então a gente
deve apenas acreditar na palavra desses seus amigos que, supostamente, tentaram
se livrar dos corpos que precisam pra viver? — Josie atacou. — Por acaso há
testemunhas desses atos incríveis?
— Alguém já tentou
e deu certo? — perguntou Jane com uma expressão cuidadosamente composta, interrompendo
o questionamento agressivo de Josie em prol de uma resposta mais prática e direta.
Aparentemente, Tyler e a irmã eram a força bruta do grupo, enquanto Diana e a
nora eram, respectivamente, a mediadora e a estrategista.
— Sim, duas pessoas
que conhecemos, na mesma época de Melanie — respondi, referindo-me a Lacey e
Candy —, mas isso já faz alguns anos, então as possibilidades são muito mais
remotas agora. E é muito perigoso para o corpo.
— Segundo a espécie
que precisa desses corpos, não é? — provocou Tyler. — Desculpe, mas ainda não
faz muito sentido acreditar nisso.
— Esses são os
fatos — disse Peg, se manifestando com firmeza, distanciando-se apenas o bastante
de sua delicadeza habitual. — Como bem colocou esse meu amigo que fez a
experiência, cabe a vocês decidirem o que vão fazer com a verdade. Mas é
preciso acrescentar a isso a informação de que não dependemos do corpo
hospedeiro para sobreviver, somente para viver aqui, neste que é apenas um
dos planetas que colonizamos. Além disso, nossos cientistas estão aperfeiçoando
técnicas que, em breve, irão permitir a criação de hospedeiros em laboratório. Ou
seja, apesar do enorme sofrimento emocional e físico que nos traria ser
retirados, nós sobreviveríamos. A mesma garantia já não pode ser dada aos
corpos de seus entes queridos, se eles não acordarem. A morte seria definitiva.
— Até onde
entendemos, as pessoas como as conhecíamos já estão mortas, não é? O corpo é só
uma casca que pode ou não reagir — concluiu Jane. — A questão para vocês,
então, é se seríamos capazes de obrigá-los ao sofrimento da retirada pela
possibilidade dessa reação. Se os forçaríamos a deixar a vida do jeito que a
conhecem, assim como fizeram conosco. A questão é se tentaríamos nos vingar.
— Dentro das nossas
regras, estamos dispostos a arriscar. A Alma em questão precisaria dar seu
consentimento público e ser devidamente assistida pelos Curandeiros, para que
ficasse em segurança durante o processo e pudesse ser restaurada à condição
inicial se o humano não acordar. Mas, sim, acho que vocês têm essa escolha nas
mãos. E alguns de nós sofrerão com isso.
— Ainda não faz
muito sentido — observou Diana. — Se vocês podem voltar de qualquer jeito e até
ter um corpo fabricado sob medida, por que se importariam com a segurança dos
hospedeiros?
— Os humanos têm
uma única vida e um único corpo para aproveitá-la. Acho que isso afeta a
perspectiva que vocês têm da nossa suposta imortalidade. Mas para nós, cada
vida que vivemos é única e valiosa e, como seres simbiontes, devemos respeito e
damos valor a essa singularidade. Cada vez que uma dessas vidas termina, seja
porque o ciclo biológico chegou ao fim ou por causa de uma retirada, é como se
morrêssemos também, para começar do zero na próxima. Isso é especialmente
doloroso aqui, porque nos unimos às emoções do corpo, desenvolvemos laços e amores
que serão rompidos por uma experiência que, para nós, é a mais próxima possível
da morte real.
A explicação é esclarecedora e
surpreendente para mim também. Talvez por ela ter escolhido, definitivamente,
esta vida como sua última, em todas as minhas conversas com Peg, eu nunca tinha
realmente entendido que o efeito da imortalidade podia ser o oposto do que a
gente esperava.
Quer dizer, sempre achei que ter
tempo e possibilidades infinitas provavelmente permitia que as Almas pudessem
dar um valor apenas relativo a cada oportunidade. No entanto, é exatamente o
contrário. E, de repente, senti uma vergonha terrível por, depois de tudo o que
vivemos, nunca ter entendido que isso na realidade os fazia se importarem mais.
— Então por quê? —
Jane voltou a questionar. — Por que vocês se arriscarão a permitir que alguns
sofram por isso? Por que não esconder de nós que existe uma possibilidade de
reverter o que foi feito?
— Porque evitar todo
sofrimento é impossível e vocês já estão sofrendo. Transferir um pouco disso
para nós parece aceitável do ponto de vista coletivo, apesar de tudo. O conceito
de sacrifício em nome do bem comum é o que sustenta nossa sociedade, é o que há
de mais natural em nossa espécie, partindo de nosso próprio nascimento. Para
que possamos existir, uma mãe que dá origem a diversas outras Almas precisa
morrer. E nós herdamos a sensação, sentimos a morte dela. Assim, entendemos em
nossa origem o que é renúncia. Neste ponto de nossas vivências aqui, muitas
Almas tiveram filhos humanos e passaram a ver os remanescentes com outros olhos.
Não queremos que nossos filhos cresçam num mundo onde deixamos outros iguais a
eles morrerem sem assistência. Em nossa concepção, portanto, o bem comum agora
deve incluir vocês também. Por isso viemos aqui numa tentativa de convencê-los
a viver conosco na sociedade maior. Vocês não precisariam mais fugir, teriam
casa, comida, cuidados médicos...
— Não faz sentido —
Tyler interrompeu, balançando a cabeça, enquanto Josie dava uma risada
descrente e Jane se concentrava nos próprios pensamentos. — Tem coisa aí. Algum
plano por trás. Essa baboseira de bem comum... De voltarmos pra casa... Vocês viveram
tempo demais aqui para não saberem que os humanos vão tentar retomar o controle
com essa informação. A história que você nos contou sobre Melanie é perigosa demais
para os ouvidos humanos, então a verdade já deve ter escapado de algum modo. E
nos contar de livre e espontânea vontade algo que deixa sua espécie tão
vulnerável só pode ser controle de danos. O plano é fazer a gente baixar a guarda
e ficar dependente da ajuda que estão oferecendo, não é? Aí vocês atacam,
acertei?
Balancei a cabeça,
descrente e contrariado. A hipótese pareceria bastante razoável se estivéssemos
falando de humanos, mas as Almas jamais agiriam de forma tão baixa. Mesmo assim
eu reconhecia que era difícil falar de abnegação para pessoas na situação em
que os Roarke se encontravam. Seria preciso mudar a estratégia para algo que fizesse
sentido na realidade deles.
Olhando de um ponto
de vista meramente egoísta, talvez ficasse mais fácil se entendessem que não estávamos
em condições de encarar as Almas como rivais, porque não éramos ameaça alguma à
espécie dominante no planeta agora. Se eles nos estendiam a mão, dentre outras
coisas, era porque, naquele ponto, podiam fazer isso sem riscos.
— Ainda que os
humanos que restaram conseguissem dobrar seus números acordando outros... —
tentei explicar. — Mesmo que houvesse uma guerra e muitas Almas morressem ou
deixassem o planeta, eles ainda seriam maioria. Vão ser por muitas décadas. E
nós precisamos deles. A infraestrutura das cidades entraria em colapso sem o
número suficiente de mãos para mantê-las. Temos que viver em paz se não
quisermos ser reis de uma droga de planeta fantasma pós-apocalíptico! Mesmo com
tudo que nos custou, devemos às Almas a tecnologia que extinguiu a fome, que despoluiu
a água...
— Nós não
precisamos de tecnologia — Josie me interrompeu. — Se somos tão poucos
sobreviventes assim, podemos conseguir nossa própria comida, como temos feito
esse tempo todo, não é? Agora, se sua promessa de nos deixar em paz é mesmo válida,
queremos nossas armas de volta.
— Vocês estão
errados, estão desconfiados sem motivo — tentei. — Não precisam mais viver em dificuldade.
— Essa conversa é
inútil. Não dá pra confiar em vocês. Então se quiserem nos manter aqui vão ter
que atirar. Caso contrário, estamos indo — decretou Tyler. E pela postura das
mulheres que imediatamente se levantaram para segui-lo, a conversa estava encerrada
por elas também.
— Eu sei o que
estão pensando — insisti. — Mas os Buscadores sabem quem são as pessoas do seu
passado, o resto de sua família e amigos. Se vocês tentarem fazer uma retirada forçada
em algum deles, vão conseguir, na pior das hipóteses, matar a Alma e destruir o
cérebro do humano. E na melhor, serão caçados e exilados em definitivo, sem
poder transitar pelas cidades e nem usufruir de qualquer ajuda. Fazer mal a alguém
é a única coisa que eles considerarão irreversível.
Ignorando minhas
palavras, os Roarke se dividiram entre procurar ao redor pelas armas e tentar
acordar os cachorros. Quando não conseguiram nenhum dos dois, tomei a palavra
de volta, mas desta vez não insistiria mais. Como Peg e eu tínhamos concordado
antes, parecer desesperados só daria a impressão de que não estávamos dispostos
a respeitar sua decisão.
— Não precisam ir
embora, nós iremos. Assim que nos afastarmos o suficiente, os Buscadores
devolverão suas armas e um frasco com quantidade suficiente da substância que
vai fazer os cães despertarem. Mas vocês vão seguir as instruções deles, porque
há outros atiradores a postos para garantir isso. Se mudarem de ideia, podem
procurar este local — falei, entregando a Diana, que me parecia a pessoa mais
razoável, o endereço da unidade mais próxima dos Víveres para a Humanidade. — Guardem
o papel, porque mesmo que não aceitem se reintegrar à sociedade, lá vão
encontrar ajuda médica e alimentos quando precisarem. É um lugar seguro., que
será mantido em pleno funcionamento enquanto houver quem necessite dele.
— Esperamos que o
tempo possa ser testemunha de nossas boas intenções, mas enquanto isso, enquanto
pensam, trouxemos mantimentos, se vocês quiserem — Peg acrescentou. — Podemos
deixar junto com as armas.
— Não, obrigada —
Josie rejeitou.
— Deixaremos mesmo
assim. É apenas uma oferta de paz e ela se mantém. Vocês aceitam se quiserem —
determinei enquanto trocava um olhar com os Buscadores. A missão tinha
fracassado, mas era preciso deixar claro uma última coisa. Então mostrei a eles
o chip em meu pulso. — Este é um documento que atesta quando um humano é amigo
das Almas. Não se aproximem das cidades sem isso ou serão capturados. Os armazéns,
no entanto, estão abertos a qualquer humano, com ou sem este chip, mas se forem
até lá, não poderão estar armados, porque os Buscadores estarão à espreita.
Vocês receberão toda a ajuda de que necessitarem e ainda têm tempo de mudar de
ideia quanto a fazer parte da nova sociedade. Mas isso implica aceitarem os
termos do acordo, ou seja, nada de armas, violência ou qualquer tipo de dano ao
bem comum. Como eu disse, se ferirem alguém, ou se simplesmente tentarem, toda
a boa vontade de nossa parte estará suspensa.
Tyler, que tinha acabado
de colocar um boné desgastado na cabeça, tocou a aba e assentiu de leve, em
sinal de que entendera o aviso. E então isso era tudo. Nossa primeira missão
tinha definitivamente afundado.
— Espere! Peregrina,
não é? — chamou Diana, interrompendo nosso movimento de nos afastarmos. — Eu
gostaria de saber... Como é o mundo agora?
— Mãe! — Josie tentou
repreendê-la. — Para que isso?
— Eu preciso mesmo
saber. Já faz muito tempo...
— É pacífico — Peg
respondeu sorrindo solidariamente. — Limpo também. Muito organizado.
— Um pouco chato
até. Não existe mais nenhum filme bom — brinquei e Diana riu.
— A fome não existe
mais... — ela falou, a entonação final deixando dúvida se estava fazendo uma
pergunta ou uma constatação.
— Não existe mais
fome, guerra, poluição ou violência. As portas ficam abertas por quanto tempo
as pessoas quiserem deixar. As crianças brincam seguras onde quer que estejam.
Os animais não sofrem, não existem mais maus tratos — disse Peg, apontando
placidamente para os cães adormecidos, tão bem cuidados dentro da precariedade
da vida dos Roarke, que indicava que deviam ser queridos.
— Parece um bom
lugar. — Os lábios secos de Diana se curvaram num sorriso. Seu olhar sereno
passou através de nós, por trás das árvores e montanhas. — Fico feliz pelo seu
filho. Obrigada, Peregrina.
Então ela olhou de
volta para nós, em despedida, e depois se juntou ao resto da família. Parada logo
ao lado de Josie, Diana afagou de leve os cabelos da filha caçula, que a observava
sem entender nada.
Sob o olhar de
todos, segurei a mão de Peg e a puxei ao meu encontro, colocando meu corpo como
barreira protetora entre ela e a família Roarke enquanto íamos embora, num gesto
de precaução que se tornara automático ao longo dos anos. Mas mesmo enquanto os
Buscadores nos abriram passagem e depois cerraram fileiras para nos proteger,
notei que os olhos dela ainda buscavam os de Diana.
— Eu sei, meu amor.
É uma esperança — disse enquanto a abraçava.
Levantando o rosto para
mim, Peg sorriu, como se soubesse de mais coisas do que eu.
— Sim. Sempre há
esperança. E as mães se entendem a esse respeito. Talvez a gente só precise
esperar um pouco. Cada coisa a seu tempo.
Sorri de volta.
Dar tempo ao tempo.
Parecia sábio. Embora renunciar ao próprio tempo para aceitar o dos outros
fosse um tanto assustador. Contudo eu podia tentar aprender com minha esposa. Porque
essa era uma das coisas que minha Peregrina, de fato, sempre soubera fazer melhor
do que eu.
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