quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CD2 Cap 36


Capítulo 36 - O Tempo dos Outros
You shut your mouth
How can you say
I go about things the wrong way?
I am human and I need to be loved
Just like everybody else does
(…)
When you say it's gonna happen "now"
Well when exactly do you mean?
See I've already waited too long
And all my hope is gone

(How Soon Is Now – The Smiths)

Ian

Começou até que devagar.
Primeiro, Andy e Paige se mudaram para a unidade de Tucson dos Víveres para a Humanidade. Eles tinham que cuidar do armazém, mantê-lo limpo, organizado e fazer o possível para que que os humanos que aparecessem não sentissem medo de que fosse uma armadilha.
Não era bem o procedimento usual, porque, nesse ponto, ainda havia mais unidades do que humanos para tomar conta delas. Ainda eram poucas as células localizadas que já viviam abertamente entre as Almas.
Por isso a maior parte dos armazéns não tinha “zeladores residentes”, somente uma equipe regular de Almas que, sob a proteção dos Buscadores, cuidava da manutenção de tudo. Mas quando Andy e Paige quiseram se mudar para Tucson, o responsável pela organização dos Víveres, que por acaso era nosso amigo Jared Howe, achou uma boa ideia. Caso houvessem humanos remanescentes pelas redondezas, certamente se sentiriam mais seguros com Andy e Paige por perto.
Era uma espécie de consenso: ao menos a princípio, humanos se dariam melhor com humanos. Por isso tentávamos formar equipes mistas de abordagem. Para quando aparecesse alguém para abordar, o que, de fato, estava começando a parecer que não seria tão frequente assim. Na verdade, além de nós e do pessoal das células já conhecidas desde a época em que Nate nos encontrou, não apareceu ninguém novo na região.
De qualquer forma , estávamos todos procurando um papel, uma forma de ajudar no processo de integração.
Assim, logo depois da partida de Andy e Paige, Lucina também se mudou com os filhos para o antigo lar de Estrela e Logan em Nova Orleans. O objetivo era ajudar Flora, que viu a necessidade de uma perspectiva humana no Conselho.
Junto com Isaiah e Liberdade, que enfim estavam tendo a chance de estudar, Lucina também teve a ideia de falar nas escolas, educando as crianças sobre a integração dos humanos da “antiga geração”, como ela passou a chamar os remanescentes. Flora comprou a ideia de bom grado e as duas têm trabalhado muito desde então, fazendo planos para implementar o projeto em outas cidades.
Heidi também se mudou, mas preferiu ir para um dos armazéns, junto com alguns membros das outras células. Um pequeno condomínio se estabeleceu na unidade do Víveres de Scottsdale e, embora não seja a intenção que os humanos vivam isolados, a escolha deles tem sido respeitada e vista como um passo válido para a reintegração.
Quanto ao resto de nós, continuávamos onde estávamos. O que parecia bem esquisito, era preciso admitir, considerando que não havia mais necessidade de nos escondermos.
Era só que, bom, depois de tanto tempo, esses lugares por vezes precários onde nos refugiamos tinham se tornado nossos lares. E não era fácil ver as pessoas partirem, mesmo que fosse para perto. Mesmo que fosse para uma vida finalmente livre.
De qualquer forma, reuniões e visitas esporádicas não seriam a mesma coisa. Por isso seria necessário um tempo para aceitarmos que a mudança era para melhor.
“Deixa só a gente voltar a se acostumar com o conforto da civilização”, disse Brandt, dando risada. “Meu Deus, que falta me faz um chuveiro!”
“Pipoca de micro-ondas e tv”, acrescentou Lily. “Mesmo que sejam aqueles programas insossos que dizem que as Almas fazem agora. Quem sabe a gente poderia ensiná-los a fazer umas coisas mais empolgantes!”
“Hum, já que você falou em micro-ondas”, Trudy opinou, “o que eu não daria por uma geladeira!”
“Com sorvete dentro, claro”, Geoffrey entrou na brincadeira, enquanto outras pessoas falavam de coisas como cinema, frutas frescas, neve, praia...
Foi uma conversa divertida, mas que não nos deixava mais ignorar o quanto nossa vida nas cavernas era limitada. Mesmo assim, ainda não era fácil simplesmente decidir sair.
Enquanto isso, nos contentávamos em transitar pelas cidades próximas, na tentativa de sentir a recém-adquirida liberdade e nos naturalizarmos com ela.
Os humanos que aceitavam fazer parte da nova sociedade, como era nosso caso, usavam pequenos chips sob a pele do pulso que brilhavam contra a luz, como uma minúscula tatuagem de padrão único. Isso queria dizer que tínhamos assinado termos de responsabilidade onde nos comprometíamos a não portar armas, não fazer mal às Almas ou praticar qualquer ato de depredação ou poluição.
Era simples, eficiente e nos garantia passe-livre por todas as cidades, mas tinha sido uma medida meio impopular a princípio. Ser marcado “como gado”, tal como dizia Kyle, podia soar meio ultrajante para alguns, mas era um preço pequeno a pagar e eu entendia.
As Almas precisavam de garantias, era compreensível.
Todo o necessário foi feito para que aqueles que optassem por continuar no ostracismo tivessem o mínimo necessário. Os armazéns distribuídos por várias estradas continham todo tipo de mantimentos não perecíveis, suplementos vitamínicos para suprir a falta dos perecíveis, móveis, ferramentas, combustível, roupas, cobertores e remédios com instruções de uso escritas de forma simples e precisa. Além disso, mensagens em cada unidade deixavam claro que qualquer emergência médica seria livremente atendida nas Instalações de Cura.
Contudo, sem assinar o termo, qualquer humano que fosse pego circulando por áreas habitadas por Almas seria prontamente capturado pelos Buscadores e reconduzido a seu lugar de origem, que agora os Escritórios andavam mapeando com interesse renovado.
Lacey, como era suposto, juntou-se aos Buscadores de Washington DC e, coordenadas com todos os estados, as equipes que ela ajudou a montar procuravam por outros grupos de humanos. Recentemente, localizaram algumas pessoas no Kansas e Kyle e Sunny foram designados para ir até lá, enquanto Peg e eu fomos para outro foco em Salem.
Depois de um dia de planejamento estratégico no Escritório de Buscadores da cidade e empolgados com nossa primeira missão, deixamos John aos cuidados da escola local e nos juntamos aos Buscadores designados para nossa proteção. Entretanto, a tarefa não era simples como fazia parecer nossa animação.
A família que fomos ver foi difícil de achar, porque estavam bem adaptados ao nomadismo. Os Buscadores tiveram que triangular o movimento das manadas de cervos que eles caçavam para conseguir uma localização provável. E quando encontraram os quatro integrantes do grupo, além de uma matilha de seis cachorros, num acampamento escondido, a aproximação foi complicada.
Era bastante tolo da minha parte nunca ter suspeitado que os Buscadores, graças a dados pré-invasão e à colaboração de familiares deixados para trás, tinham uma espécie de levantamento de quem poderiam ser os humanos fugitivos em cada cidade. Mas, obviamente, para minha leviana surpresa, eles tinham. E segundo esses dados, suspeitava-se que o único homem do grupo era Tyler Roarke, ex-marceneiro e caçador, acostumado à vida na floresta. E as mulheres, provavelmente, eram sua mãe, irmã e esposa.
Pelo que tinha sido observado, Tyler e a irmã Josie eram exímios atiradores, capazes de nos alvejar à distância, bem antes de eu poder mostrar a eles que era humano também. Se fossem abordados diretamente por Peg ou por qualquer um dos Buscadores então, seria morte certa, por isso não dava nem pra pensar na possibilidade.
Quase fiquei doente com a ideia de expor minha mulher a isso, mas havia uma boa estratégia, afinal.
Na verdade, foi quase cinematográfico.
Um drone sobrevoou o acampamento dispersando uma nuvem de Dormir. No mesmo instante, a família inteira e até os cachorros foram ao chão. Peg achou hostil amarrá-los e convenceu os Buscadores que a abordagem já soaria suficientemente violenta sem essa medida, por isso tive que me contentar em revistar pessoalmente cada um deles, me livrando de facas e armas de fogo, garantindo que daria conta de contê-los fisicamente se reagissem. Depois prendi os cachorros, por via das dúvidas, antes de borrifar o Acordar apenas no rosto dos humanos, um a um, começando por Tyler.
Como era de se supor, ele bufou feito um animal quando acordou, e partiu para cima de mim. A certa distância, como eu tinha exigido para a proteção de Peg, os Buscadores ameaçaram uma reação, mas eu os detive com um gesto de mão. Já tinha dito que podia com Tyler, e podia mesmo.
— Viemos em paz — declarei quando o contive, o que podia parecer meio difícil de engolir, com meu braço em torno da garganta e de um dos braços dele. — Sou humano, olhe! Olhe!
Num movimento estranho, consegui, graças ao fato de ser bem mais alto que o cara, virar o rosto dele para cima de forma que enxergasse meus olhos. Ele parou de espernear depois disso, parecendo meio confuso.
— Se quiséssemos capturar vocês, já teríamos feito, mas viemos apenas conversar. Depois iremos embora e você não precisará nos ver outra vez se não quiser. Mas acho melhor...
Uma pancada nas costelas me interrompeu. Culpa minha. Relaxei um pouco, achando que ele não resistiria mais, e o filho da mãe conseguiu soltar o braço que eu segurava para trás com minha outra mão e me acotovelar. No entanto, eu não seria burro duas vezes.
Prevendo que ele tentaria alcançar o coldre vazio, foi para lá que direcionei minha mão e capturei de volta a dele, torcendo-a com força. Ele ganiu através dos dentes trincados, sufocando a dor e a raiva, então afrouxei a torção no pulso e o aperto no pescoço para que ele pudesse respirar melhor, mas ainda o mantive preso
Os Buscadores estavam claramente agitados e, atrás deles, consegui enxergar, mesmo à distância, as lágrimas de angústia se formando nos olhos de Peg.
Praguejei internamente, mas me mantive firme. Não podia me dar ao luxo de me distrair pensando em formas de poupar sua sensibilidade. Por mais que quisesse.
Eu odiava o fato de Peg estar ali. Odiava que tivesse que me ver agindo de forma violenta e que sentisse medo por mim. Odiava, acima de tudo, a sensação de saber que, naquele momento, ela sentia medo por Tyler também, do que ela sabia que eu poderia fazer com ele. Mas não dava para protegê-la sempre de quem nós éramos.
Humanos eram previsíveis numa coisa: estávamos dispostos a tudo para proteger quem ou o que nos importava. Em situações assim, agíamos sobretudo por medo. E o medo não era um bom conselheiro.
Eu acabaria com Tyler se fizesse algum mal a Peg. Ou se me desse motivos para temer isso. E se ela estivesse aqui à frente dele, procurando lidar com um homem desses através de uma simples conversa, não tinha dúvida alguma de que ele tentaria machucá-la. Porque, naquele momento, tudo o que ela representava era entendido por ele como ameaça.
Sabia disso porque já tinha estado onde ele estava, já tinha sido o sobrevivente desesperado que só enxergava o inimigo. E, por causa desse sentimento brutal, já fui o algoz daquela que daria minha vida agora para proteger. Assim, eu sabia que essas sensações não mudavam sem que a gente esclarecesse a verdadeira natureza delas.
Estava bem ciente disso. Dolorosamente ciente. E precisava que Tyler e sua família também estivessem, antes de qualquer coisa. Então virei o corpo dele de frente para Peg, para que enxergasse o brilho prateado nos olhos dela, e disse próximo a seu ouvido.
— Está vendo aquela garota loira? — Com dificuldade, ele assentiu e eu continuei, minha voz apenas um fio rouco da mais sincera ameaça. — É a minha mulher e ela veio aqui para tentar ajudar você e sua família. Ajudar. Porque ela é uma Alma, e é isso que ela faz. Mas eu sou como você, sou um homem que defende os seus. Ela é uma Alma, mas eu sou humano. Você sabe o que isso significa. E tão certo quanto você tentou puxar sua arma contra mim, se fizer algo mais do que olhar torto pra ela, quebro seu pescoço aqui mesmo.
Esperei até que ele absorvesse todas as minhas palavras, uma por uma. Depois amenizei um pouco o tom e continuei.
— As outras Almas são Buscadores treinados. Se você reagir, se tentar me bater, se fizer algum movimento brusco na direção de qualquer um de nós, eles vão atirar e não vão errar. Você não vai morrer, a munição não é letal, mas vai doer como o inferno. Eu já levei um tiro desses e posso te garantir que você vai preferir não passar pela experiência. O mesmo vale para sua família. Se mesmo assim você quiser se arriscar, lembre-se de novo de que eu não sou uma Alma. Eles só estão aqui para conversar, eu também, mas mato você se precisar. Entendeu? Responda! — Usei meu joelho para atingir a parte de trás da perna dele quando não disse nada e seu corpo oscilou com o choque. — Preciso saber se você vai aceitar meus termos. Se vai ouvir pacificamente o que minha mulher e eu temos a dizer.
— Parece que não tenho muita escolha, não é? — ele falou pela primeira vez.
A voz estava rouca e o corpo continuava tensionado, mas as palavras abriam uma pequena e sofrível brecha para o diálogo. Se eu conseguisse parar de parecer um bicho rosnando, talvez ele se tornasse mais amigável também.
— Retirei todas as suas armas e as de sua família, mas foi apenas para garantir que vocês não nos ferissem. Não tenho intenção de fazer mal a elas ou a você, assim como os Buscadores não estão aqui para capturá-los. Eles não têm interesse, porque há anos as Almas perceberam que os resistentes como nós são hospedeiros inviáveis, então eles resolveram nos deixar em paz. Dou a minha palavra de que viemos apenas conversar e de que iremos embora em seguida. Se vocês não aceitarem nossa proposta de convívio, não voltaremos mais. Ninguém vai importuná-los.
— Ok — ele respondeu relutante, embora desse pra ver que não confiava em mim. Contudo, Tyler parecia ser daquele tipo para quem a palavra de um homem valia alguma coisa, então imaginei que estivesse se esforçando.
— Vou te soltar e acordar as mulheres, deixando Josie por último, já que, depois de você, ela é a ameaça maior. — Assim que deixei escapar o nome da garota, percebi que, sem querer, tinha conseguido uma vantagem que poderia manipular, porque Tyler não conseguiu disfarçar a surpresa por eu saber o nome de sua irmã e isso surtiu um efeito estranho. De certa forma, me colocou num patamar de superioridade, porque ele realmente não sabia mais o que esperar de mim. Resolvi então tirar proveito disso para ganhar um pouco de confiança. — Sim, Tyler, sabemos quem vocês são e por onde têm andado, mais uma prova de que se os Buscadores quisessem levá-los já teriam feito isso há muito tempo.
Soltei-o em seguida, e ele se afastou de mim num salto, examinando insistentemente meus olhos e flexionando o pulso dolorido pela torção, testando os movimentos.
— Vou acordá-las, mas, por garantia, seus cachorros vão dormir mais um pouco. Asseguro você de que todos ficarão bem e que não tenho nenhuma intenção de fazer mal, entendido?
— Tudo bem, vou colaborar. Como eu disse antes, não tenho escolha. Mas é bom que você tenha em mente que o mesmo que disse sobre ser um homem que protege os seus, seja lá o que te faz chamar de seus essas... coisas, também vale pra mim. Também mato vocês com minhas próprias mãos se descumprirem suas promessas. Teremos uma guerra aqui. Porque se as armas deles não são fatais, o mesmo não posso dizer das minhas intenções se me ameaçarem. Não preciso das armas que você escondeu pra provar isso.
“Quero ver você tentar, chapa!”, foi o que tive vontade de dizer, mas Tyler só estava cantando de galo, tentando amenizar o fato de ter se rendido, o que para ele devia ser uma grande humilhação. Agora que tinha retomado um mínimo de controle da situação, provavelmente precisava sentir que era capaz de fazer algo com isso, embora eu desconfiasse de que, no fundo, ele sabia que as ameaças eram tão úteis quanto qualquer bravata.
— Vou borrifar essa substância no rosto delas. É o mesmo que usei em você, então lembre que não faz mal algum. Você me apresenta e explica a situação a cada uma, devagar porque pode ser que estejam um pouco desorientadas no começo. Além disso, é melhor que ouçam de você. Explique bem as regras de segurança — orientei, deixando claro através do tom mais incisivo que as ameaças que fiz continuavam válidas. — Faça como combinamos e todo mundo vai ficar bem.
Devagar, uma a uma, as mulheres da família Roarke foram despertadas por mim e esclarecidas por Tyler. A primeira foi a mãe, Diana, que parecia a mais assustada a princípio, mas depois passou a olhar para as Almas com um toque de curiosidade passiva.
Jane, a esposa, se mostrou bem mais relutante. Dava para perceber pela postura defensiva, que ela compartilhava com Tyler a repugnância com que ele se referiu às Almas.
“Coisas”.
Tentando não pensar nisso, acompanhei com atenção renovada o despertar de Josie que, como eu esperava, se mostrou mais combativa. Quase obsessivamente, olhou insegura e com raiva de mim para Tyler muitas vezes enquanto ele explicava a situação, e depois me lançou um olhar de puro asco quando eu disse que agora que Peg já tinha segurança para se aproximar, podíamos iniciar nossa conversa.
— Esposa? — bufou quando ouviu a maneira como me referi a Peregrina. — Mas que merda! Como é que ele pode considerar uma coisa dessas como uma mulher? — resmungou para a mãe que tentava fazê-la se calar, porque percebeu que da parte de Josie havia pouca preocupação de que eu ouvisse.
Optei por ignorar. Se eu não fingisse demência naquele momento, ia acabar esganando a “doce” Josie Roarke. Aí então, com certeza, meu lugar nas equipes de negociadores da paz estaria seriamente inviabilizado e Peg teria que lidar sozinha com tipos como aqueles. Além disso, felizmente, ainda me restava decência o bastante para que não fosse tão fácil agir de forma agressiva com uma mulher.
— Esta é Peregrina, minha esposa, mãe do meu filho — falei, olhando de forma insolente para Josie enquanto passava o braço protetoramente em torno de Peg.
— Filho...!? — Josie quase cuspiu a palavra, engolindo as outras em seguida por causa de um gesto contido da mãe. Mas a cara de nojo era de quem tinha engolido viva uma barata. — Como foi que vocês...? Um filho. Como foi que isso aconteceu?
— Como fizemos um filho? — ironizei, incapaz de me conter. — Achei que essa parte fosse a mais fácil de entender.
Foi Diana, a mãe, quem tentou apaziguar a situação, olhando para Peg e percebendo seu desconforto. Parecia que, apesar de tudo, ainda restava bastante sensibilidade àquela mulher.
— Desculpe se a pergunta soou errada — disse ela, direcionando o olhar para Peg, mas fixando-o em mim depois. — O que queremos entender é como foi que vocês se envolveram, uma Alma e um humano. Como foi que você terminou entre eles, rapaz?
Eu tinha certeza de que Josie tinha querido dizer exatamente o que insinuou, e as expressões jocosas de Tyler e Jane só me confirmavam isso. “Como foi que você se rendeu aos parasitas?”, era a pergunta real. “Como teve coragem de dormir com uma delas e fazer um filho?”
Peg segurou minha mão com força, e foi então que percebi que tinha me adiantado um passo e me posto à frente dela de forma defensiva. Mas era um ato tão mecânico quanto tolo. A Alma Peregrina estava acostumada a humanos imbecis. O que não queria dizer que eu precisasse gostar disso.
No que dependesse de mim, os mandaria à merda e deixaria apodrecer na floresta, se não queriam nossa ajuda. No entanto, era preciso lembrar que ao menos Diana parecia merecer um pouco de compreensão e paciência.
— Na verdade, fui eu que me meti entre os humanos — explicou Peg docemente. — Quando cheguei neste planeta, fui colocada em uma hospedeira recém capturada. O nome dela era Melanie. O objetivo era encontrar outros humanos fugitivos como ela e, através de suas lembranças, pude informar à Buscadora que me acompanhava sobre a existência de uma criança, seu irmão mais novo, e de um companheiro. Mas a consciência de Mel não foi suprimida. Ian já contou a vocês sobre os hospedeiros resistentes que fizeram as Almas desistirem das buscas, mas naquela época, eu não sabia que isso era possível. Era só... assustador demais para que eu conseguisse falar a respeito. De qualquer maneira, mesmo depois que entendi o que estava acontecendo, fui incapaz de entregar a verdade sobre Melanie. Também me apeguei ao garotinho e ao homem de suas lembranças e deixei que ela me convencesse a protegê-los. No esconderijo onde os encontrei, conheci Ian e outros humanos, mas quando cheguei, todos me odiavam. Com o tempo, enquanto me fizeram prisioneira, perceberam que eu só queria ajudar. Ian e eu nos tornamos amigos e, depois, mais do que amigos. Mas Mel ainda estava ali e eu não podia viver um amor que não era dela em uma vida e em um corpo que, sim, lhe pertenciam e me empurravam para outra direção. Então ensinei a um dos meus amigos como me tirar dali e libertar Mel.
— O quê? — Jane se manifestou pela primeira vez. — Isso é possível?
— No nosso caso, era — respondeu Peregrina. — Porque a consciência dela tinha sobrevivido junto à minha.
— E como é que você está aqui? — Tyler questionou.
— Nós não íamos permitir que Peg morresse. Então Melanie, o namorado e o irmão dela roubaram o corpo de outra Alma, invadiram um hangar e colocaram essa Alma retirada em hibernação dentro de uma nave que seria mandada a outro planeta — resumi, observando a inquietude surpresa com que se entreolhavam. — Mas entendam que não é um erro tático nosso lhes contar sobre essa possibilidade. Todos os envolvidos no processo de paz optaram pela absoluta honestidade, o que inclui também dizer que a retirada de uma Alma, depois de tantos anos, tem uma probabilidade esmagadora de falhar. Dois dos nossos amigos já tentaram. Uma delas, anos atrás, e o outro mais recentemente. E o fato é que não foi possível em nenhum dos casos.
— Então a gente deve apenas acreditar na palavra desses seus amigos que, supostamente, tentaram se livrar dos corpos que precisam pra viver? — Josie atacou. — Por acaso há testemunhas desses atos incríveis?
— Alguém já tentou e deu certo? — perguntou Jane com uma expressão cuidadosamente composta, interrompendo o questionamento agressivo de Josie em prol de uma resposta mais prática e direta. Aparentemente, Tyler e a irmã eram a força bruta do grupo, enquanto Diana e a nora eram, respectivamente, a mediadora e a estrategista.
— Sim, duas pessoas que conhecemos, na mesma época de Melanie — respondi, referindo-me a Lacey e Candy —, mas isso já faz alguns anos, então as possibilidades são muito mais remotas agora. E é muito perigoso para o corpo.
— Segundo a espécie que precisa desses corpos, não é? — provocou Tyler. — Desculpe, mas ainda não faz muito sentido acreditar nisso.
— Esses são os fatos — disse Peg, se manifestando com firmeza, distanciando-se apenas o bastante de sua delicadeza habitual. — Como bem colocou esse meu amigo que fez a experiência, cabe a vocês decidirem o que vão fazer com a verdade. Mas é preciso acrescentar a isso a informação de que não dependemos do corpo hospedeiro para sobreviver, somente para viver aqui, neste que é apenas um dos planetas que colonizamos. Além disso, nossos cientistas estão aperfeiçoando técnicas que, em breve, irão permitir a criação de hospedeiros em laboratório. Ou seja, apesar do enorme sofrimento emocional e físico que nos traria ser retirados, nós sobreviveríamos. A mesma garantia já não pode ser dada aos corpos de seus entes queridos, se eles não acordarem. A morte seria definitiva.
— Até onde entendemos, as pessoas como as conhecíamos já estão mortas, não é? O corpo é só uma casca que pode ou não reagir — concluiu Jane. — A questão para vocês, então, é se seríamos capazes de obrigá-los ao sofrimento da retirada pela possibilidade dessa reação. Se os forçaríamos a deixar a vida do jeito que a conhecem, assim como fizeram conosco. A questão é se tentaríamos nos vingar.
— Dentro das nossas regras, estamos dispostos a arriscar. A Alma em questão precisaria dar seu consentimento público e ser devidamente assistida pelos Curandeiros, para que ficasse em segurança durante o processo e pudesse ser restaurada à condição inicial se o humano não acordar. Mas, sim, acho que vocês têm essa escolha nas mãos. E alguns de nós sofrerão com isso.
— Ainda não faz muito sentido — observou Diana. — Se vocês podem voltar de qualquer jeito e até ter um corpo fabricado sob medida, por que se importariam com a segurança dos hospedeiros?
— Os humanos têm uma única vida e um único corpo para aproveitá-la. Acho que isso afeta a perspectiva que vocês têm da nossa suposta imortalidade. Mas para nós, cada vida que vivemos é única e valiosa e, como seres simbiontes, devemos respeito e damos valor a essa singularidade. Cada vez que uma dessas vidas termina, seja porque o ciclo biológico chegou ao fim ou por causa de uma retirada, é como se morrêssemos também, para começar do zero na próxima. Isso é especialmente doloroso aqui, porque nos unimos às emoções do corpo, desenvolvemos laços e amores que serão rompidos por uma experiência que, para nós, é a mais próxima possível da morte real.
A explicação é esclarecedora e surpreendente para mim também. Talvez por ela ter escolhido, definitivamente, esta vida como sua última, em todas as minhas conversas com Peg, eu nunca tinha realmente entendido que o efeito da imortalidade podia ser o oposto do que a gente esperava.
Quer dizer, sempre achei que ter tempo e possibilidades infinitas provavelmente permitia que as Almas pudessem dar um valor apenas relativo a cada oportunidade. No entanto, é exatamente o contrário. E, de repente, senti uma vergonha terrível por, depois de tudo o que vivemos, nunca ter entendido que isso na realidade os fazia se importarem mais.
— Então por quê? — Jane voltou a questionar. — Por que vocês se arriscarão a permitir que alguns sofram por isso? Por que não esconder de nós que existe uma possibilidade de reverter o que foi feito?
— Porque evitar todo sofrimento é impossível e vocês já estão sofrendo. Transferir um pouco disso para nós parece aceitável do ponto de vista coletivo, apesar de tudo. O conceito de sacrifício em nome do bem comum é o que sustenta nossa sociedade, é o que há de mais natural em nossa espécie, partindo de nosso próprio nascimento. Para que possamos existir, uma mãe que dá origem a diversas outras Almas precisa morrer. E nós herdamos a sensação, sentimos a morte dela. Assim, entendemos em nossa origem o que é renúncia. Neste ponto de nossas vivências aqui, muitas Almas tiveram filhos humanos e passaram a ver os remanescentes com outros olhos. Não queremos que nossos filhos cresçam num mundo onde deixamos outros iguais a eles morrerem sem assistência. Em nossa concepção, portanto, o bem comum agora deve incluir vocês também. Por isso viemos aqui numa tentativa de convencê-los a viver conosco na sociedade maior. Vocês não precisariam mais fugir, teriam casa, comida, cuidados médicos...
— Não faz sentido — Tyler interrompeu, balançando a cabeça, enquanto Josie dava uma risada descrente e Jane se concentrava nos próprios pensamentos. — Tem coisa aí. Algum plano por trás. Essa baboseira de bem comum... De voltarmos pra casa... Vocês viveram tempo demais aqui para não saberem que os humanos vão tentar retomar o controle com essa informação. A história que você nos contou sobre Melanie é perigosa demais para os ouvidos humanos, então a verdade já deve ter escapado de algum modo. E nos contar de livre e espontânea vontade algo que deixa sua espécie tão vulnerável só pode ser controle de danos. O plano é fazer a gente baixar a guarda e ficar dependente da ajuda que estão oferecendo, não é? Aí vocês atacam, acertei?
Balancei a cabeça, descrente e contrariado. A hipótese pareceria bastante razoável se estivéssemos falando de humanos, mas as Almas jamais agiriam de forma tão baixa. Mesmo assim eu reconhecia que era difícil falar de abnegação para pessoas na situação em que os Roarke se encontravam. Seria preciso mudar a estratégia para algo que fizesse sentido na realidade deles.
Olhando de um ponto de vista meramente egoísta, talvez ficasse mais fácil se entendessem que não estávamos em condições de encarar as Almas como rivais, porque não éramos ameaça alguma à espécie dominante no planeta agora. Se eles nos estendiam a mão, dentre outras coisas, era porque, naquele ponto, podiam fazer isso sem riscos.
— Ainda que os humanos que restaram conseguissem dobrar seus números acordando outros... — tentei explicar. — Mesmo que houvesse uma guerra e muitas Almas morressem ou deixassem o planeta, eles ainda seriam maioria. Vão ser por muitas décadas. E nós precisamos deles. A infraestrutura das cidades entraria em colapso sem o número suficiente de mãos para mantê-las. Temos que viver em paz se não quisermos ser reis de uma droga de planeta fantasma pós-apocalíptico! Mesmo com tudo que nos custou, devemos às Almas a tecnologia que extinguiu a fome, que despoluiu a água...
— Nós não precisamos de tecnologia — Josie me interrompeu. — Se somos tão poucos sobreviventes assim, podemos conseguir nossa própria comida, como temos feito esse tempo todo, não é? Agora, se sua promessa de nos deixar em paz é mesmo válida, queremos nossas armas de volta.
— Vocês estão errados, estão desconfiados sem motivo — tentei. — Não precisam mais viver em dificuldade.
— Essa conversa é inútil. Não dá pra confiar em vocês. Então se quiserem nos manter aqui vão ter que atirar. Caso contrário, estamos indo — decretou Tyler. E pela postura das mulheres que imediatamente se levantaram para segui-lo, a conversa estava encerrada por elas também.
— Eu sei o que estão pensando — insisti. — Mas os Buscadores sabem quem são as pessoas do seu passado, o resto de sua família e amigos. Se vocês tentarem fazer uma retirada forçada em algum deles, vão conseguir, na pior das hipóteses, matar a Alma e destruir o cérebro do humano. E na melhor, serão caçados e exilados em definitivo, sem poder transitar pelas cidades e nem usufruir de qualquer ajuda. Fazer mal a alguém é a única coisa que eles considerarão irreversível.
Ignorando minhas palavras, os Roarke se dividiram entre procurar ao redor pelas armas e tentar acordar os cachorros. Quando não conseguiram nenhum dos dois, tomei a palavra de volta, mas desta vez não insistiria mais. Como Peg e eu tínhamos concordado antes, parecer desesperados só daria a impressão de que não estávamos dispostos a respeitar sua decisão.
— Não precisam ir embora, nós iremos. Assim que nos afastarmos o suficiente, os Buscadores devolverão suas armas e um frasco com quantidade suficiente da substância que vai fazer os cães despertarem. Mas vocês vão seguir as instruções deles, porque há outros atiradores a postos para garantir isso. Se mudarem de ideia, podem procurar este local — falei, entregando a Diana, que me parecia a pessoa mais razoável, o endereço da unidade mais próxima dos Víveres para a Humanidade. — Guardem o papel, porque mesmo que não aceitem se reintegrar à sociedade, lá vão encontrar ajuda médica e alimentos quando precisarem. É um lugar seguro., que será mantido em pleno funcionamento enquanto houver quem necessite dele.
— Esperamos que o tempo possa ser testemunha de nossas boas intenções, mas enquanto isso, enquanto pensam, trouxemos mantimentos, se vocês quiserem — Peg acrescentou. — Podemos deixar junto com as armas.
— Não, obrigada — Josie rejeitou.
— Deixaremos mesmo assim. É apenas uma oferta de paz e ela se mantém. Vocês aceitam se quiserem — determinei enquanto trocava um olhar com os Buscadores. A missão tinha fracassado, mas era preciso deixar claro uma última coisa. Então mostrei a eles o chip em meu pulso. — Este é um documento que atesta quando um humano é amigo das Almas. Não se aproximem das cidades sem isso ou serão capturados. Os armazéns, no entanto, estão abertos a qualquer humano, com ou sem este chip, mas se forem até lá, não poderão estar armados, porque os Buscadores estarão à espreita. Vocês receberão toda a ajuda de que necessitarem e ainda têm tempo de mudar de ideia quanto a fazer parte da nova sociedade. Mas isso implica aceitarem os termos do acordo, ou seja, nada de armas, violência ou qualquer tipo de dano ao bem comum. Como eu disse, se ferirem alguém, ou se simplesmente tentarem, toda a boa vontade de nossa parte estará suspensa.
Tyler, que tinha acabado de colocar um boné desgastado na cabeça, tocou a aba e assentiu de leve, em sinal de que entendera o aviso. E então isso era tudo. Nossa primeira missão tinha definitivamente afundado.
— Espere! Peregrina, não é? — chamou Diana, interrompendo nosso movimento de nos afastarmos. — Eu gostaria de saber... Como é o mundo agora?
— Mãe! — Josie tentou repreendê-la. — Para que isso?
— Eu preciso mesmo saber. Já faz muito tempo...
— É pacífico — Peg respondeu sorrindo solidariamente. — Limpo também. Muito organizado.
— Um pouco chato até. Não existe mais nenhum filme bom — brinquei e Diana riu.
— A fome não existe mais... — ela falou, a entonação final deixando dúvida se estava fazendo uma pergunta ou uma constatação.
— Não existe mais fome, guerra, poluição ou violência. As portas ficam abertas por quanto tempo as pessoas quiserem deixar. As crianças brincam seguras onde quer que estejam. Os animais não sofrem, não existem mais maus tratos — disse Peg, apontando placidamente para os cães adormecidos, tão bem cuidados dentro da precariedade da vida dos Roarke, que indicava que deviam ser queridos.
— Parece um bom lugar. — Os lábios secos de Diana se curvaram num sorriso. Seu olhar sereno passou através de nós, por trás das árvores e montanhas. — Fico feliz pelo seu filho. Obrigada, Peregrina.
Então ela olhou de volta para nós, em despedida, e depois se juntou ao resto da família. Parada logo ao lado de Josie, Diana afagou de leve os cabelos da filha caçula, que a observava sem entender nada.
Sob o olhar de todos, segurei a mão de Peg e a puxei ao meu encontro, colocando meu corpo como barreira protetora entre ela e a família Roarke enquanto íamos embora, num gesto de precaução que se tornara automático ao longo dos anos. Mas mesmo enquanto os Buscadores nos abriram passagem e depois cerraram fileiras para nos proteger, notei que os olhos dela ainda buscavam os de Diana.
— Eu sei, meu amor. É uma esperança — disse enquanto a abraçava.
Levantando o rosto para mim, Peg sorriu, como se soubesse de mais coisas do que eu.
— Sim. Sempre há esperança. E as mães se entendem a esse respeito. Talvez a gente só precise esperar um pouco. Cada coisa a seu tempo.
Sorri de volta.
Dar tempo ao tempo. Parecia sábio. Embora renunciar ao próprio tempo para aceitar o dos outros fosse um tanto assustador. Contudo eu podia tentar aprender com minha esposa. Porque essa era uma das coisas que minha Peregrina, de fato, sempre soubera fazer melhor do que eu.

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