quarta-feira, 26 de junho de 2013

LDS - Capítulo 5

Ao entrarmos onde estava o tal Doc, o avistamos imediatamente. Ele estava conversando com uma mulher que parecia nervosa e confusa por estar ali. Mal pude olhar para ela, entretanto, menos ainda tomar conhecimento sobre o motivo de seu nervosismo. Ao percorrer o cômodo com os olhos, eu tinha me
deparado com dois criotanques. Em suas tampas, luzes vermelhas brilhavam indicando que havia Almas ali. Sete criotanques vazios jaziam descuidadamente empilhados no chão ali perto. Já não era possível acalentar nenhuma dúvida sobre o que se seguiria. Senti-me desmoronar como se todos os meus ossos tivessem virado farinha. Agora eu entendia o que eles queriam dizer quando diziam que eu estaria a salvo, que nada de mal me aconteceria. Sim, eu permaneceria viva, mas nunca mais veria Kyle.

– Eu não quero ir! Eu quero ficar com vocês – implorei para Kyle enquanto lágrimas corriam por meu rosto aos borbotões.

– Eu sei, Sunny. Sinto muito.

Mas o que é que ele queria, afinal? Pensei que ele tivesse ido me buscar. Sabia que ele não estava apaixonado por mim, que era meu corpo que ele queria. Mas o que seria desse corpo sem mim? O que sobraria? Kyle me abraçava mais forte, tentando abafar meus soluços com seu peito, mas isso só me fazia chorar mais.

– Preciso falar com ela um minuto, Kyle – disse Peg.

– Não, não – implorei para que Kyle não me soltasse. E se eu nunca mais pudesse voltar a seus braços? E se ele fosse embora dali no minuto em que conseguisse passar o “problema” para alguém mais habilitado a lidar com ele?

– Está tudo bem. Ele não vai a lugar nenhum. Eu só quero lhe fazer umas perguntas – assegurou-me ela, adivinhando meu receio.

Kyle me virou para ela, mesmo que eu ainda resistisse, e eu me prendi a ela então. Ela entendia o que era estar ligada aos humanos, tinha certeza. Eu podia convencê-la a me ajudar, a não me deixar ir embora.

Enquanto me consolava, ela perguntou a Kyle o que tinha acontecido, como ele tinha me encontrado. Ele contou a ela como eu o reconheci e não ofereci resistência, como eu não tive medo dele e como conversamos e nos entendemos rapidamente. Ele pôs a mão em meu rosto e disse a ela em um tom de apelo:

– É uma boa garota, Peg. Não podemos enviá-la para algum lugar realmente bom?

– É isso que eu quero perguntar a ela. Onde você viveu, Sunny?

– Só aqui e com os Ursos. Estive cinco vidas lá. - E é o bastante. – Mas prefiro aqui – Kyle vive aqui – Eu não tive nem um quarto da expectativa de vida aqui! – Não pude estar com ele.

Ela me fez outras ofertas e eu tinha motivos para recusar todas elas. A razão real, a mais importante, no entanto, era uma só: Kyle. Quando eu chegasse a qualquer uma dessas outras vidas, mesmo a mais bonita delas, onde eles dois decidiram me mandar, Kyle estaria morto há muitos e muitos anos. A simples ideia de seguir adiante num mundo onde ele não existisse e mesmo sua lembrança fosse antiga demais para ser significante, revoltou meu estômago, minha mente, meu coração.

– Não se preocupe, Sunny. Você vai gostar dos Golfinhos. Vai ser bom. Claro que vai ser bom. – ela disse como se estivesse assegurando a si mesma mais do que a mim – Sunny, eu tenho que lhe perguntar sobre Jodi.

De novo esse nome, aquela que ele disse que eu roubei. A minha hospedeira? Aquela que ele amava?

– O que sobre ela? – resmunguei de má vontade.

– Ela está... ela está aí dentro com você? Você pode ouvi-la?

Olhei para ela confusa. O que ela queria dizer? Será que eles pensavam que a tal Jodi ainda estava aqui, de alguma maneira? Que havia uma chance de eu não ser eu?

– Não compreendo o que quer dizer.

– Ela já falou com você alguma vez? Você alguma vez já teve consciência dos pensamentos dela?

Uma estranha dentro de mim? Parecia assustador demais para sequer imaginar. Absurdo.

– No meu... corpo? Pensamentos dela? Ela não tem nenhum. Sou eu quem está aqui agora.

Esse corpo era meu. E tinha sido desde que cheguei aqui. Ou será que não? Afinal, havia uma razão para que eu sonhasse com Kyle todas as noites. A possibilidade me enregelou até os ossos.

Eles discutiam sobre quanto tempo fazia que eu estava aqui, se os anos passados nesse corpo tinham sido suficientes para apagá-la. Eu não me importava. Queria apenas ficar aqui e ter a chance de ser amada como Peg era. Por que ela podia ficar aqui? Como podia trair a mim, sua irmã Alma, dessa maneira?

– Não é justo! Por que você consegue ficar? Por que eu não posso ficar se você pode?

– Isso não seria justo, não é? Mas eu não vou ficar Sunny. Eu também tenho de ir. E logo. Pode ser que a gente parta juntas.

A possibilidade me tranqüilizou, mas só um pouco.

– Eu tenho de ir embora, Sunny. Assim como você – continuou ela – Tenho de devolver o meu corpo, também.

Os olhos azuis de Ian chisparam no ar em nossa direção e ele todo se endureceu.

– O quê? – perguntou ele com a voz machucada como se agora o atropelado fosse ele. Há pouco tempo eu percebi que ele estava por perto, que estava ligeiramente atento ao que acontecia, mas ao ouvir o que acabara de ser dito ele se voltou complemente na direção dela e seu rosto se metamorfoseou. O olhar apaixonado e terno se fora e dera lugar a uma fúria que eu só tinha vislumbrado antes nas histórias que nos contavam sobre o passado dos humanos. Era assim que nos avisavam para temê-los, para ficar longe deles.

Ele parecia um monstro para mim e eu só queria que ele desaparecesse e nos deixasse em paz. Ao invés disso, ele estendeu a mão para ela, querendo puxá-la dali. Quando ela não correspondeu ao gesto, ele agarrou o braço dela, prestes a arrastá-la. Tentei protegê-la, segurar-me a ela, mas ele a chacoalhou até que eu não conseguisse mais mantê-la perto de nós.

Kyle protestou, não entendendo a magnitude da violência do irmão, assim como não tinha entendido o tamanho do sentimento dele por Peg, mas Ian dobrou o joelho e desceu o pé sobre o rosto de Kyle, que estava sentado no chão ao meu lado. Antes mesmo de ficar chocada, eu me postei entre eles, mas Kyle, pego pela pancada no processo de se levantar, se desequilibrou ainda mais com o peso do meu corpo e nós caímos juntos no chão.

Jared tentou impedir Ian, ouvi uma discussão e o barulho de outra pancada. Os outros permaneciam impassíveis, surpresos demais para reagir. Jared voltou para onde estávamos, determinado a fazer algo e estendeu automaticamente as mãos para a arma que Jeb ainda segurava, mas algo na postura do outro homem o fez recuar imediatamente.

– Nada disso, rapaz, deixe-os em paz.

Jared suspirou e, contendo toda a sua raiva e ansiedade, disse clara e lentamente:

– Jeb, você sabe por que ele ficou assim? O que foi que ele descobriu que Peg está planejando fazer?

– Ora, Jared, você acha que sou o quê, um idiota? Você não era o único prestando atenção.

– Então você sabe que não podemos deixar os dois sozinhos. Ele está com raiva demais agora.

– Fique calminho aí, Jared. Ian não machucaria a Peg.

– Pense direito nisso, Jeb. Ele nunca vai perdoá-la.

– Ah, Jared, será que tenho que explicar tudo pra você? Ian conhece a Peg melhor do que qualquer um de nós. Ele a entende e a respeita. É claro que ele vai perdoá-la! Eventualmente. Isso não quer dizer que ele não vá espernear muito e fazer de tudo para ela mudar de ideia.

– É disso que eu tenho medo! Do quão longe ele chegaria...

– Deixa disso. Ele precisava ficar sabendo. Não era certo ela agir pelas costas da gente. Enquanto ela fica ocupada com ele, a gente pode pensar num jeito de ficar com as nossas duas garotas.

– E que jeito seria esse?

– Nisso eu ainda não pensei. Também não dá pra ser perspicaz e brilhante ao mesmo tempo com tanta coisa acontecendo!

Jeb riu da própria observação, mas Jared, que parecia derrotado, continuou encarando-o sério e um pouco hesitante.

– Deixa estar, filho. A gente dá um jeito nisso – disse Jeb quando percebeu que a preocupação de Jared não cedia - Eu ainda não sei como nós vamos acertar as coisas, mas sei que, de um jeito ou de outro, a decisão é somente da Peg e de mais ninguém.

– O corpo é da Melanie - afirmou Jared de forma intransigente.

– Não nesse momento. É a vida da Peg que está em jogo também. Essa decisão não pertence nem mesmo a Mel, muito menos a você. Tampouco te pertence a discussão que tem que acontecer entre os dois lá fora. Estou te avisando, Jared, fique longe deles.

Doc, que tinha se ajoelhado ao nosso lado assim que percebeu que o rosto de Kyle estava sangrando, acompanhava a discussão em silêncio enquanto limpava o ferimento. No entanto, seu semblante aparentemente calmo e concentrado traía uma visível inquietação. Quando toda a violência aconteceu, ele pareceu tremendamente perturbado. Dava pra perceber que sua natureza era quase tão sensível quanto à dos de nossa espécie, mas quando tudo se acalmou, ele continuou me parecendo agitado. Ao me ver observando-o, ele fez um esforço para mudar o foco da concentração de todos. Passou um dos braços ao redor de Kyle como se fosse ajudá-lo a se levantar, mas como o peso era demais para ele, exclamou:

– Uma ajudinha aqui, por favor!

Jeb imediatamente veio até nós e passou seu braço do outro lado de Kyle. Fiz um esforço para me grudar a Kyle, não o queria perto da arma nem longe de mim, mas Jeb me tranquilizou:

– Olha, querida, o nosso doutor aqui precisa curar o seu amigo. Você precisa soltá-lo agora, está bem?

Eu assenti nervosa, mas me encolhi contra parede.

– Boa menina – disse Jeb – Ei, Doc, dá uma olhada na cara do Jared também. Ian o acertou em cheio!

– Que nada! Eu estou bem – resmungou Jared – Veja o Kyle primeiro.

– Sei. Então faz o favor de fazer companhia para a moça, ok? – ordenou Jeb enquanto ajudava Kyle a se acomodar num catre.

Jared virou-se para mim e estendeu-me a mão. Eu não estendi a minha para segurá-la, ao invés disso, simplesmente fiquei olhando para ela. Eu não estava preparada para aquilo, não estava preparada para o toque de um humano estranho e assustador. Não estava preparada para ocupar qualquer outro lugar, fora dos braços de Kyle, que não fosse aquele cantinho da parede. Então ele abaixou a mão e despencou ao meu lado, encostando-se também à parede e estendendo as pernas diante de si.

– Dia ruim também, né? Eu sei que o meu está.

Permaneci em silêncio por um instante, mas estava curiosa e preocupada:

– Você acha que Jeb tem razão? Acha que ela vai ficar bem? – perguntei.

– É duro admitir, mas o danado do velho Stryder sempre tem razão. Ela vai ficar bem, sim.

– Por que é que ela quer ir embora? Ela é amada aqui.

– Sim, ela é. Mas existe outra pessoa dentro dela. A mulher que eu amo está lá dentro. Peg quer libertá-la.

– Como assim?

– O corpo que a Peg ocupa pertence à minha Melanie e ela está viva lá dentro. Você não ouve a Jodi aí dentro de você? Ela não fala com você?

– Não, não ouço nada. Não tem ninguém aqui dentro. Como sabe que a Melanie está lá dentro?

– A Peg a sente, as duas conversam o tempo todo.

– Deve ser assustador!

– Não é? – disse Jared – É por isso que não podemos deixar isso acontecer para sempre. A Mel precisa ser libertada. Infelizmente o único jeito é a Peg ir embora.

– Mas por que ela faria isso? Por que abriria mão da própria vida, do amor que ela tem aqui?

– Porque a Peg ama a Mel.

– Esquisito.

Ele me pegou olhando para Kyle quando disse isso.

– Sim, o amor é esquisito. Você diz isso porque o ama, não é?

– Sim, eu nunca o tinha visto, mas meu corpo se lembra dele, eu sonho com ele todas as noites. Não quero deixá-lo. Não entendo como isso pode ser assim.

– Isso é porque Jodi devia amá-lo muito. É o corpo dela que se lembra dele. Como é que você pode ter certeza de que ela não está aí dentro?

Não respondi, não sabia o que dizer. Não tinha mais certeza de nada. Se Melanie estava viva, Jodi poderia estar também.

– Você não poderia amá-la? Quero dizer, não poderia um dia amar a Peg para que ela não precisasse ir embora.

Acho que Jared entendeu o que eu estava realmente perguntando, porque seu olhar foi até Kyle e voltou para mim:

– Se você achasse que Kyle estava vivo dentro de uma prisão, não faria qualquer coisa para libertá-lo e tê-lo de volta?

A clareza daquele sentimento me atingiu em cheio e não deixava margem para outra resposta. Eu podia não estar pronta para admitir, mas naquele momento percebi que, assim como Peg, eu faria o que Kyle precisasse.

– Eu amo a Peg também – Jared continuou ao perceber minha tristeza – Ela é minha amiga e eu faria qualquer coisa para que ela ficasse aqui. Qualquer coisa menos abrir mão da Mel. Você entende? – disse ele, olhando novamente para Kyle.

– Sim, eu entendo – sussurrei – Mas Ian ama Peg.

Por que Kyle não pode me amar também?

– E eu continuo amando a Melanie.

E Kyle continua amando a Jodi.

– E Peg, como ela se sente? Isso não importa?

E como eu me sinto, não importa?

– Importa, sim. E muito – disse ele, enquanto fazia um claro esforço para elaborar melhor sua resposta - Eu acho que ela ama o Ian também. E parte dela também me ama. Deve ser difícil para ela. Nada aqui é muito fácil de entender, não é mesmo?

Assenti e ele continuou:

– O pior é que ela não pode viver nenhum desses amores. Ela não pode me amar, porque eu pertenço à Melanie. Não pode amar o Ian porque o corpo também pertence à Melanie. E a mim, de certa forma. O único amor que ela pode viver, ainda que isso exija dela o maior dos sacrifícios, é o amor que ela tem pela Mel.

Pensei nisso. Ela daria à Melanie um presente, devolvendo-a à sua vida. Libertaria Ian de um amor que ele não poderia ter. Embora eu ache que ele não entenderia dessa forma, é o que ela estava tentando fazer. E daria a Jared a possibilidade de ser feliz com a mulher que amava, já que ele não poderia amá-la quando a vida dela significava uma prisão para Melanie.

– Você está errado, Jared. Na verdade é muito fácil de entender.

Como era possível que isso tornasse tudo muito mais difícil?

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